
Nem queremos acreditar que já passou metade do Bons Sons deste ano. Daí que queiramos apanhar tudo desde o começo do terceiro e penúltimo dia.
Começar a tarde, molengona do cansaço, ao som de Madalena Palmeirim soube bem. A lisboeta, que pelo festival passou há dois anos com o projecto Nome Comum, pisou o palco MPAGDP e começou por cantar aquela que categorizou como “uma música muito própria”: “Em Casa de Freira (O Espeto é de Pão)”, do seu EP de estreia. Delicada e com uma voz que às vezes piscava o olho a Norah Jones, Palmeirim apresentou-nos algumas das suas compostas canções, prometendo um disco para este ano. Ficámos impressionados com os instrumentais, enriquecidos pela auto-harpa de Palmeirim e o violino de Ana Luísa Valdeira, assim como a percussão contida de Nuno Mourão e a guitarra tropical de Manuel Dordio. O momento mais brilhante do concerto foi “Ao Sol da Serra”, onde o arco do violino trocava o passo e era a madeira que tocava nas cordas, produzindo um som de fazer cair o queixo. Tamborilávamos os dedos nas pernas e ouvíamos um crescendo impressionante, digno de montanhas e árvores milenares e verdejantes, de Sol na cara, de viagens inesquecíveis pelas serras de Portugal – em boa parte por causa do nome da canção. Uma agradável surpresa que nos deixou a salivar pelo álbum completo.
Vinte minutos depois da hora marcada, Bonecos e Campaniça entravam no mesmo palco que Madalena Palmeirim. O nome do projecto não poderia falar melhor daquilo que aconteceu em palco. António Bexiga (Uxu Kalhus) agarrava-se a uma viola campaniça da qual fazia o que lhe apetecia, desde a utilização de um arco a pedais de loop e delay, de drones indianos a pura brincadeira de kazoo. Ao mesmo tempo, Manuel Dias acompanhava os temas campaniços com títeres e máscaras que manuseava. Desde dança do ventre ao tango, do mimetismo a números de palhaço, de danças misteriosas a espíritos assombrosos, Dias punha as marionetes a fazer tudo o que quisesse, fosse pela estrutura que controlava ou pelas mãos que dirigiam o movimento das máscaras.
Lá fora, já tocavam os Dear Telephone no coreto – ou palco Giacometti. Canções simples de indie pop para um público ainda a crescer, já que o calor pedia a sombra e os gelados antes do Sol e do alcatrão escaldado.
Melhor foram os Tim Tim Por Tim Tum, quadrilha de sonoros bateristas (em nome e expressão) – José Salgueiro, Alexandre Frazão, Bruno Pedroso e Marco Franco – que inauguraram o final da tarde e o palco Tarde ao Sol. Com as quatro baterias orientadas para o centro do palco, os bateristas conseguiram a proeza de preencher todos os cantinhos da rua, 360 graus à sua volta. Num concerto feito de padrões rítmicos complexos e metódicos, de pormenores e brincadeiras sonoras (e não só), os sorrisos da plateia eram gerais. Apitos e cornetas em diálogo a fazer lembrar “Several Species of Small Furry Animals Gathered Together in a Cave and Grooving with a Pict”, dos Pink Floyd, encantaram pessoas de todas as idades imediatamente antes dos bombos e duas flautas de bisel irromperem abrasivamente pelos ouvidos de todos. Viagens por dezenas de terras e ritmos, por dezenas de diferentes sons e materiais. Canudos na cabeça do público de onde brotavam notas diferentes e quatro cornetas de festa do Noddy rematando uma resposta ritmada, o sino da igreja a marcar a meia hora, rap delirante na língua dos pês e uma caneca oficial do festival eram alguns dos motivos que entravam e nunca saíam dos ritmos alucinantes. Um concerto de mestres aos quais não podemos chamar de maquinais porque as máquinas nunca fariam obra tão iluminada. José Salgueiro chegou a fazer de maestro da aldeia e dos outros três músicos por várias vezes, alado de um carisma e uma simpatia divertidíssimos. Nenhum concerto ao ar livre no festival teve tanta gente calada, ouvindo-se apenas uns risos e comentários polvilhados. No fim, comandado novamente por Salgueiro, o público urra e grita as letras U e A com a tarola e o prato de Alexandre Frazão, culminando os urros nos aplausos, com o sino a dar as sete horas também no ritmo e dando por terminado o concerto. Uma lição de música, espectáculo e interacção com o público. Uma beleza.
Poucos minutos depois, chegávamos ao palco Giacometti, já de medidas cheias do concerto anterior mas com a mesma curiosidade de sempre – em Cem Soldos, nunca sabemos o que nos espera. Isaura era quem nos levava ao coreto mas não nos deu grande vontade de por ali ficar muito tempo. Um concerto morno feito de lentas canções de um electro-pop pouco interessante e diferente, do qual fizeram parte as canções do EP de estreia Serendipity, editado pela NOS Discos em 2015.
Entretanto rumávamos ao palco Eira para ouvir um bocadinho dos Keep Razors Sharp. Não ficámos impressionados com o concerto, baseado no (chato) disco homónimo de 2014 – também da NOS Discos. Canções iguais umas às outras, a tentar soar a stoner e a ficar-se pelo caminho, insossas e despidas de interesse.
O concerto com mais afluência da noite, como seria de esperar, foi o de Carminho. Parte da nova geração do fado, a par de Gisela João (que também já passou pelo festival), Ana Moura e outras, a lisboeta cantou vários temas dos seus três discos. Num concerto simpático mas em nada surpreendente, destaque para o single-sucesso de “Saia Rodada”, cuja música fez dançar e cuja letra algumas pessoas sabiam cantar, e os bonitos momentos de “Bom Dia, Amor”, em que toda a gente cantou sem Carminho e de “As Minhas Penas”, em que a fadista e a sua banda cantaram e tocaram sem amplificação, tornando o largo da aldeia numa casa de fados. Preferíamos mesmo estar numa casa de fados escura e suja onde realmente se fizesse silêncio para cantar o fado – no Bons Sons, a maioria do público preferiu conversar, já que nada de especial – fora nas canções mencionadas – acontecia em palco. No encore, Carminho não teve outra opção senão tocar de novo o seu hit, “Saia Rodada”, para puxar pelo público e satisfazê-lo. Seguimos para o palco Eira.
No palco Eira, ao som dos White Haus, dançou-se os instrumentais e fechou-se ouvidos à voz, ligeiramente irritante, de João Vieira. Synthpop à 80s, quase Heróis do Mar num planeta mais sintético, enquanto luzes rodopiantes e sintetizadores cíclicos acompanhavam caixas de ritmos e o baixo groovy de André Simão (que já tinha tocado na noite anterior, com os Sensible Soccers). Vieira, acompanhado de uma voz feminina, cantava, dançava e pulava, elogiando o público e mimando-o com belas canções novas que nos deixaram curiosos pelo que aí vem. Grupos dançando macarenas, mães e infantes bailando modinhas, novos e velhos em comunhão, o concerto dos White Haus foi um cenário bonito de se ver.
Por fim, a fechar os concertos, entravam os Fandango no palco Lopes-Graça. Sintetizadores e batidas, guitarra portuguesa e acordeão se misturaram numa mescla de música tradicional feita electrónica, portugalidade transformada em dança e sons siderais que se esfumavam na noite de Cem Soldos, ecoando nas paredes das ruas, reverberando nos portões de metal, brilhando nas estrelas, a aldeia transformada numa nave espacial de toques e retoques lusitanos. Em frente, no palco Aguardela, houve ainda tempo para “requebranço” ao som dos DJ sets de Dotorado Pro, Branko e Rastronaut.
Fotos gentilmente cedidas por Carlos Manuel Martins e Pedro Sadio
Keep Razors Sharp nada têm a ver com stoner.