
Acordar em Cem Soldos é pular da cama com o rufar dos tambores, a alegria de coros improvisados nas ruas, o som tilintante das canecas de inox que vão buscar água à fonte e muitos outros sons cuja capacidade de tornar mais fáceis e saborosas as manhãs é já cientificamente comprovada.
Depois dos ateliês matinais para crianças, que logo cedinho nos deram música boa para os ouvidos, o segundo dia de festival começou definitivamente com as Adufeiras do Paúl, no palco MPGDP, na igreja. Mulheres de armas, cada uma munida de um adufe e rijas cordas vocais, com o simples objectivo de investigar, preservar e transmitir a tradição sonora e musical do Paúl, em cantigas (até “Ao Passar a Ribeirinha”, mais uma vez) e jogos musicais (as “Três Pombinhas”, por exemplo) – até o som do milho na peneira, poça! – que foram buscar aos pais, tios e avós. Ouvia-se ecos das montanhas da Serra da Estrela no som percussivo e profundo dos adufes, num canto quase místico que arrepiava a espinha mais resistente. Várias vezes o público acompanhou as Adufeiras, findando o concerto com um encore onde se brandou aos céus a letra de “Milho Verde”, culminando o concerto com uma ovação em pé.
A banda seguinte, Os Tunos, ocupou o mesmo palco mas sem o mesmo brilho. Trouxeram a Cem Soldos uma portugalidade kitsch, com slows e swings saídos de casamentos na aldeia, com o teclado a tocar ritmos pré-definidos e a guitarra a solar por cima de alguns acordes de sintetizador. O público terá ficado mais feliz no fim – cantando até, por cima do instrumental –, quando a banda tocou a sua versão de “Sonhos de Menino”, de Tony Carreira.
Grutera foi catarse à moda da saudade de Agosto. Escapismo e errância em guitarra, ao estilo de um Filho da Mãe ou Norberto Lobo. Bonitas e tristes paisagens sonoras se ouviram no largo do palco Giacometti, que encheu ao Sol para descansar e abraçar o final da tarde que se punha. Humilde e sem saber bem o que dizer perante a recepção àquele que, segundo ele ,seria o seu último concerto durante algum tempo, Guilherme Éfe disse ao público que por não saber falar muito bem aprendeu a tocar guitarra. E melhor não poderia ter feito. Exímio na técnica e na melodia, o nazareno fez um dos melhores concertos do festival. Mar e mar e nostalgia e saudosismo assaz e impiedoso se ouvia nas cordas reverberadas, esmurradas e puxadas em pancadas erráticas bem pensadas. Uma prestação quase perfeita com um público que não se controlou em aplausos.
Decidimos, então, ir espreitar a performance de Vera Mantero ao auditório. Pegando no povo esquecido da Serra do Caldeirão – os “serranhos” -, a bailarina e coreógrafa lisboeta fez-nos reflectir sobre o modo com que o mundo ocidental cortou a ligação entre corpo e espírito. Com discursos e cantigas dos registos de Giacometti, aliados de uma teatralidade bem curiosa e divertida, Mantero pintou o retracto de uma população europeia que provou não estar de todo distante de algumas tribos africanas ou americanas, onde a ligação à terra e os rituais mais ancestrais se mantinham em pleno século XX, em pleno solo português. No final, a bailarina teve tempo ainda de pedir ao público rendido que aprendesse uma canção, para que ela a pudesse dançar. Palmas e ovações, seguimos a correr para um dos concertos que mais queríamos ver e ouvir.
Chegámos ao palco Giacometti ao mesmo tempo que os Lavoisier. Não sendo novidade para esta casa, esperávamos nada menos que um concerto brilhante. Patrícia Relvas e Roberto Afonso abriram o espectáculo com um excerto de “Porta P’ra Tudo”, de Álvaro de Campos, registada na canção “Pessoa”, do primeiro disco do duo. A esvoaçante Patrícia punha-se a “Viajar” – novamente um poema de Pessoa – e a valsa continuava em “Vejam Bem”, versão da original de Zeca Afonso. O momento seguinte seria uma homenagem às mulheres artistas cujo trabalho foi perdido ao longo do tempo, com a desigualdade de género gritante na literatura (do passado). “Estátua”, poema da viseense Judite Teixeira. Arrepios, aplausos e assobios de uma aldeia que sentiu a falta do grito imponente dos Lavoisier. “Fauna”, uma canção original”, antecedia um momento de música tradicional portuguesa onde se lembrava Giacometti e Lopes-Graça, com Patrícia Relvas a lembrar a célebre frase do último: “A música popular portuguesa é bela, difícil é reconhecê-lo”. Começando com uma mística “Senhora do Almurtão”, seguiu-se “Romance do Cego” – canção que a avó de Roberto lhe cantava -, um “Vira” que transitou para uma inesperada “Marcolino” (Fausto Bordalo Dias). A “Guerra” vinha depois, sublime, viajante, arrepiante e dedicada a todos os combatentes dos fogos que têm assolado o país. Por fim, Lavoisier lançaram-se em “Fa(r)do” e “Sou Povo”, onde fomos hipnotizados pelo triângulo de metal que Patrícia tocava, a galope, acompanhada pelas palmas do grato público. Anunciado o final do concerto, toda a gente se levantou em agradecimento, com uma euforia sem fim. Roberto e Patrícia não conseguiram, então, não voltar para “Acordai” – muito pedida pelo público. Há poucas palavras para esta canção e ainda menos para a versão dos Lavoisier. Ninguém hesitou em dar tudo o que tinha em palmas, gritos e assobios. Agradecimentos fervorosos de ambos os lados, mais um concerto para guardar na gaveta de boas memórias do Bons Sons.
Lodo tocavam a seguir, no palco Eira, e foram morninhos. Com momentos mais altos e outros mais dispensáveis, a banda natural da aldeia de Cem Soldos oscilou entre o pós e o prog rock, soando a uns Ornatos Violeta mais pesados. No meio de várias paisagens sonoras bem carregadas de sentimento, o momento mais feliz terá sido o (quase) último – a versão de “Verdes Anos”, original de Carlos Paredes, mesmo antes do encore. Seguimos para o palco Lopes-Graça.
Cristina Branco era fadista simpática e bem cantante, até piscando o olho ao alternativo com “Alvorada”, escrita por Luís Severo, mas não deu um concerto memorável, começando por suscitar a curiosidade e acabando por desiludir.
Da Chick era simpática e poseur, a tentar fazer um neo-funk de raízes afroamericanas mas com uma postura particularmente irritante, fosse quando conversava e puxava pelo público em inglês, fosse quando mandava bater palmas ou abanar o rabo com uma voz esganiçada e descontrolada. Fomos fazer tempo para o palco Lopes-Graça.
Finalmente, Deolinda foi mais outro caso de quente e frio. Quente nos momentos em que as canções mais antigas enchiam os pulmões do público com as letras caricatas, frio nas canções mais recentes e menos interessantes – pavorosas, até, como a foleira nódoa “A Velha e o DJ”. Ana Bacalhau tanto aquece como arrefece, fazendo valer a pena em “Seja Agora”, “Não Tenho Mais Razões”, “Mal Por Mal”, uma “Fado Toninho” onde o público cantou as primeiras estrofes sozinho, sem a banda, na marcha popular de “A Problemática Colocação de Mastro”. O concerto findou em beleza com “Movimento Perpétuo Associativo”, “Um Contra o Outro” e, no encore, “Fon-Fon-Fon”.
O segundo dia de festival seguiu noite dentro com os DJ sets de Niagara, DJ Lilocox e Puto Márcio que fizeram do largo da aldeia – e do palco Aguardela – uma Noite Príncipe, onde se dançou o afro futurismo até as articulações não deixarem mais.
Fotos gentilmente cedidas por Carlos Manuel Martins e Pedro Sadio