Os Blur sempre foram um caso à parte na música britânica. Ninguém como eles soube mudar e reflectir a passagem do tempo, das modas, do ambiente, inclusivamente político e social. A história deixará Ok Computer como o disco que matou a britpop e o seu vazio em favor da experimentação e do reflexo da alienação, mas isso poderá ter sido apenas um facto cronológico. De facto, a partir de The Great Escape para a frente, os Blur nunca deixaram de explorar, de procurar novos rumos, de transformar o seu som. E com a coragem de o terem feito apesar de serem pontas de lança indiscutíveis da britpop – coisa que os Radiohead nunca foram – e que os deixava com muito mais a perder.
The Magic Whip marca um regresso tardio e inesperado. Mas antes de reflectirmos sobre ele, temos de ir à história sobre como nasceu este improvável disco. O reencontro dos Blur – sobretudo entre os seus eixos centrais Damon Albarn e Graham Coxon (vocalista e guitarrista, respectivamente), assentou numa celebração do passado, uma reunião para mostrar quão vivo é o legado desta banda. Mas serviu também, internamente, para Coxon e Albarn, lenta mas seguramente, irem reacendendo a proximidade e a amizade que mantiveram desde crianças até à ruptura, em 2003, aquando da edição de Think Tank. Apesar de tudo – e até hoje, o que é notável – nem tudo está bem no reino destes londrinos. A mágoa entre Coxon e Albarn, com as acusações mais tarde trocadas na imprensa, é muito funda. Basta ver a banda agora, dando entrevistas junta: guitarrista e vocalista parecem daquelas pessoas que se magoam mas que também se amam, que sofrem ao estar juntas mas que não conseguem existir separadamente. Isto perante o olhar de Dave Rowntree e Alex James (baterista e baixista, respectivamente), que parecem mais ocupados em manter positivo o ambiente que permita manter viva a banda das suas vidas.
The Magic Whip nasceu de uma série de coincidências. No final de 2013, andavam os Blur em digressão pelo Oriente quando o festival para o qual estavam contratados foi cancelado. Não tinham planos para os dias seguintes, e decidiram passa-los num estúdio em Hong-Kong, sem compromisso. A ideia não era necessariamente ensaiar as músicas de 15 ou 20 anos antes, mas trabalhar numa série de esboços que, criativamente, unissem mais a banda. Nesses cinco dias, os músicos viram-se, pela primeira vez, os quatro realmente juntos: longe de casa, sem distrações, e com tempo para ver se a velha magia criativa voltava a funcionar. A dieta desses dias foram ‘jam sessions’ relativamente soltas e o trabalho em cima de esboços de canções e ideias novas de Coxon mas, sobretudo, de Albarn, o eterno compositor profícuo. Desses cinco dias obsessivos, ficaram horas e horas de gravações (o baixista diz que dava para fazer um novo disco) e cerca de 15 canções relativamente alinhavadas. No entanto, havia um grande problema: Damon Albarn. Não só não tinha escrito uma letra como não estava, de todo, convencido de que estava ali a base de um disco, e muito menos de que seria boa ideia voltar a colocar os Blur a andar a todo o vapor.
Coxon não pensava assim e, quase um ano depois, pediu autorização a Albarn para revisitar as gravações e ver o que se podia fazer com aquilo. Enquanto o vocalista andava em digressão a promover o seu álbum a solo, Everyday Robots, Coxon convidou para o ajudar o velho aliado Stephen Street, produtor que deixou a marca em óptimos discos de Smiths, Suede, Morrissey e, lá está, alguns dos clássicos dos Blur. E foi o resultado desse trabalho de formiguinha que deu aos temas uma aparência de canções quase acabadas. E foi, então, que Albarn deu o sim para um novo disco. Faltavam as letras, e o vocalista passou uma temporada, sozinho, em Hong-Kong, para buscar inspiração que coubesse junto das músicas aí gravadas um ano antes. O resultado é The Magic Whip, o oitavo disco dos Blur, o primeiro desde Think Tank, de 2003, e o primeiro com Coxon a bordo desde 13, de 1999.
Esta longa introdução é importante porque tudo isto marca o som e o ambiente do disco. Na verdade, apesar de ter sido Coxon a dar forma a boa parte do projecto, The Magic Whip é marcadíssimo por Albarn, e pela sonoridade dos vários projectos em que se envolveu ao longo dos últimos 20 anos. E isto é um gigantesco sinal de altruísmo do guitarrista, que não sucumbiu à tentação de, com o material à frente, replicar o som típico dos Blur dos anos 90, colocar a sua guitarra distintiva à frente de tudo. Na verdade, este disco soa a outra coisa: soa a um disco a solo de Albarn com a guitarra de Coxon. E isso chega. Alex James, o dandy, e Dave Rowntree, o contabilista parecido com Jorge Sampaio, não deixam por aqui grande marca, o que também já era verdade em vários discos anteriores dos Blur.
Ao longo dos 12 temas oficiais, há ecos fortes de Everyday Robots e do óptimo disco dos The Good, The Bad and The Queen (“Lonesome Street”, “Ice Cream Man”, “Pyongyang”); em “New World Towers” temos um cheiro de Gorillaz; o que falta, às vezes, é Blur.
Isto é relativamente injusto, porque o som deles está lá. Não o som dos loucos anos 90 e da britpop. Os Blur já não são essa banda há muito, muito tempo. O que perderam em ‘britishness’ ganharam em mundo, o que perderam em pica e energia ganharam em profundidade e, até, em marcas do cansaço normal da vida. “Go Out”, o terceiro tema, traz-nos os Blur de volta, os Blur do disco homónimo de 1997, o álbum da transição que deixou para trás a Inglaterra e abraçou os sons do rock exploratório e alternativo dos EUA. “The Are Too Many of Us” lembra a sonoridade desse mesmo disco. Já “Ghost Ship” traz-nos 13, enquanto a última faixa do disco, “Mirrorball”, nos transporta para o imaginário de Think Tank.
Apesar de tudo, é incrível como o disco consegue manter uma coesão e coerência à prova de furacões. Raramente acelera, nunca cede ao refrão fácil, é sempre profundo e relevante. O único momento mais fora, um doce para os fãs e para qualquer amante de música, é “Ong Ong”, pop simples e perfeita, mas ainda calma e quase triste.
As letras – o que é estranho num processo de produção tão fragmentado – assentam na perfeição nas músicas. Alienação, crescimento e envelhecimento, solidão e tecnologia, ocidente e oriente. Um mundo em que estamos sempre em contacto com toda a gente sem estarmos, de facto, em contacto seja com quem for; um mundo que nos permite estar amanhã no Senegal ou no Japão, e que aproveitamos para tirar ‘selfies’ para meter no facebook e no instagram.
Acredito que este será o último disco dos Blur. Não porque o desejo – se mantiverem a qualidade deste podem mandar vir mais – mas porque me parece uma forma extraordinariamente apropriada de terminar um percurso, a todos os títulos, brilhante. Estes são os Blur de agora: cansados, crescidos, magoados – até uns com os outros – mas não rancorosos. Um final que pisca o olho e referencia boa parte do seu percurso, sem procurar ser quem já não é.
Um disco complexo sem ser difícil, profundo sem deixar de ser pop no bom sentido. Um grande disco de uma grande banda que, como nós, se olhou ao espelho e se apercebeu que cresceu.