Duas das melhores amostras do cardápio nacional juntaram-se no passado Sábado no Musicbox: Um espectáculo imersivo e catártico, capaz de despertar qualquer alma rockeira do coma.
Barcelos deixou-nos uma choruda herança musical que continua viva e sempre a crescer, multiplicando-se entre géneros e gerações, e sem nunca se fechar entre barreiras temporais ou espaciais. Dela todos podem ser seus beneficiários, não apenas os seus parentes mais próximos, mas sim qualquer pessoa que partilhe o mesmo amor pela música. E que esteja atenta ao calendário de concertos.
Sábado foi noite de rock de Barcelos em Lisboa: a começar, já com a sala do Musicbox praticamente cheia, os mais novos Killimanjaro, a abrir para os veteranos Black Bombaim. Sobre estes últimos posso dizer que, mesmo depois de já ter visto uma boa mão cheia de concertos deles, não houve nenhuma vez em que sentisse que estava propriamente preparada para o que aí vinha. Sábado foi como um lembrete disso, mas ainda assim conseguiu ter o seu ‘quê’ de inesperado, mesmo ainda tendo bem vivo na memória o facto de já terem sido capazes de me despertar do sono e do cansaço de uma jornada de 14 horas de Reverence Valada, com uma actuação poderosa e revitalizante pelas 5h da manhã. Mesmo tendo essa informação toda de antemão, a verdade é que, ainda assim, o meu corpo assimilou todas essas sensações e reacções inerentes ao consumo de (boa) música ao vivo como uma jarda do caraças (pardon my french) com a qual não contava. Mas não me estou a queixar, agradeço o abanão, a apatia não me interessa.
A noite começou a aquecer logo com a abertura dos Killimanjaro, mais uma fornada de qualidade de Barcelos (e também ela com o selo da Lovers and Lollipops), a trazer um rock carregado e pujante. Um trio enérgico e cheio de garra, capaz de estimular uma boa quantidade de neurotransmissores, talvez também pela sua particularidade de explorar acerrimamente as ramificações da sua música. Passamos um bocadinho pelo heavy metal, talvez mais agora com o último EP Shroud (editado em Junho do ano passado), também pelo stoner rock, ouvimos qualquer coisa a fazer lembrar Red Fang, mas na verdade estamos a ouvir a catchy “December”, do álbum de estreia Hooks (de 2014), que já ganhou mais alguns fãs do que as demais por ter andado nos ouvidos do país através de uma campanha publicitária da WTF, mas que de facto é uma faixa que merece todo o mérito que esse spam comercial lhe acabou a dar. E outra verdade é que como primeira parte, foram tratados – e portaram-se – como bem mais do que uma mera primeira banda.
A noite prosseguiu rapidamente, ansiosa para os “irmãos mais velhos”. Já estão calejados, a experiência já se ouve, cada vez mais bem definida, ao mesmo tempo que as barreiras e os limites que definem os rótulos que lhes colam na testa são cada vez mais lassas, ténues, eventualmente obsoletas. Em 2012 lançam Titans, álbum em que contam com presenças como Steve Mackay dos The Stooges e Adolfo Luxúria Canibal, que aqui ajuda e incentiva o trio a ultrapassar as metas e a continuar a correr. Teria de ser ele a dar voz e letra à única música com elas; afinal de contas foi ele a instigar o nome da banda (com o seu tema “Amesterdão Have a Big Fun”). Em 2013 pisam o palco do Roadburn, sonho de miúdo de qualquer adulto de uma banda de rock psicadélico. Em 2014, fazem um álbum com os conterrâneos La La La Ressonance e transformam aquilo que podia ser uma salganhada de instrumentos numa fusão coesa, que completa ambos os lados. No mesmo ano acabam a lançar Far Out, que apenas com duas músicas acabou a conquistar muitos tops nacionais, deixando nuas as estruturas que seguram os limites desse psych/stoner rock: a inclusão do saxofone de Rodrigo Amado como a peça-chave das já-não-tão finitas possibilidades da sua música, agora mais exótica e dançante. E em Setembro do ano passado, o culminar disto tudo com o álbum conjunto com a lenda do free jazz Peter Brötzmann. A sua terra é Barcelos, mas os Black Bombaim vão muito mais além da sua zona de conforto, e se possível mais longe ainda do que a zona de conforto das outras bandas do mesmo registo. No concerto não houve quarto elemento, mas a verdade é que como power trio já catalisam em doses monumentais, permitindo um espectáculo imersivo e sempre de qualidade superior. Afinal de contas, estes são daqueles que nos representam lá fora. Assim como os Killimanjaro. E nós sempre orgulhosos.