Hoje em dia é cada vez mais raro criar-se uma grande expectativa sobre um disco que está para sair. Isto porque os gloriosos dias das grandes bandas ou bandas grandes (consoante o gosto de cada um) acabou. E essas grandes bandas quando lançam um novo álbum pouco há a acrescentar ao catálogo ou então são tão inesperadas que ninguém se preparou psicologicamente para isso como foi o caso do último álbum de David bowie. Daí ter que se dar o máximo de atenção a uma banda que já tem uma dimensão grande, pois já chega a um público a roçar já no mainstream mas mantém ainda o seu lado alternativo, de “luta”, de necessidade de acrescentar algo mais à música e se isso não se verificasse ao seu quarto disco, então estariam muito mal.
Ora, os próprios Arcade Fire acabaram por alimentar essa mesma expectativa, esse tal nervoso miudinho da espera por um novo trabalho, coisa que nas últimas décadas poucas bandas me fizeram sentir. Isto porque desde que ouvi os primeiros acordes de “Neighborhood #1 (Tunnels)” do seu primeiro álbum vi que ali estava algo diferente e realmente de valor. Neon Bible e The Suburbs vieram cimentar os Arcade Fire como a melhor banda do pop/rock do séc XXI. Ao seu lado neste momento só mesmo os Arctic Monkeys. Pois bem, essa expectiva começada com as notícias no ano passado que um dos produtores deste novo LP, que só há pouco tempo se soube chamar-se Reflektor, era nada menos que James Murphy, o criador de outra grande banda, infelizmente acabada, os LCD soundsystem. No entretanto, um pouco por todo mundo, vários desenhos feitos a giz começaram a aparecer nas paredes com uma mensagem quase indecifrável. Começava a formar-se uma bola de neve que rebentaria com o primeiro single “Reflektor”. Com uns poucos utilizados 7 minutos, “Reflektor” mostrou o mais recente lado dos Arcade. Mais electrónico, com outros tipos de instrumentos mas com a intensidade que sempre marcou a banda de Win Butler. Não agradou a todos tal como este disco não vai agradar. Não tem o ambiente sofrido de Funeral nem o sombrio de Neon Bible que na minha opinião são os mais fortes da banda pois penso que The Suburbs sofre por alongar-se um pouco demais. Reflektor pese embora ser um álbum duplo – o primeiro da banda – tem menos músicas porém mais alongadas, o que cria uma sensação de um álbum mais compacto. 85 minutos que retratam mais um tema escolhido pela banda norte americana com pózinhos de França caribenha. E é essa uma das razões porque são tão especiais e melhores que os outros. São mais conscientes do que se passa no seu mundo e cada disco não é apenas uma colecção de canções cada uma por si mas sim uma obra temática, uma espécie de ópera-rock com vários actos, onde normalmente estão presentes varias emoções humanas.
E essas emoções começam logo com “Reflektor” que, basicamente, dá o mote para o resto do disco. Quem gosta de “Reflektor” gostará de Reflektor. Os outros ficarão desiludidos e nunca mais voltarão a dar tanto valor a Arcade Fire. E o que é que tem “Reflektor” de tão especial? Basicamente resume uma carreira numa só música. Desde as vozes repartidas entre o casal Win e Regine, passando pelos “francesismos” tão particulares da banda canadiana, não esquecendo os crescendos com “Just a reflection, of a reflection, of a reflection, of a reflection, of a reflection/Will I see you on the other side? (Just a Reflektor)” que tão bem Win Butler sabe fazer, despertando em nós todo um sentimento escondido bem lá no fundo que nos faz pele de galinha quando este atinge o clímax. Outro dos pontos importantes em “Reflektor” é a sua sonoridade, mais dançante que também já havia sido testada em “Sprawl II (Mountains Beyond Mountains)” no álbum anterior. Curiosamente é em “Reflektor” que David Bowie acabaria por fazer uma participação especial, ele que é uma das maiores influências dos Arcade Fire. A música acaba com os batuques a fazer lembrar “Sympathy For the Devil” e logo entra “We Exist” a fazer lembrar “Billie Jean” de Michael Jackson. A estas batidas não será alheio o facto do disco ter sido maioritariamente gravado na Jamaica com o produtor habitual, Markus Dravs, além do já referido James Murphy que dá uma ajuda na junção caribe-urbe mas de modo algum transforma os canadianos nuns pseudo LCD.
O segundo grande momento do disco chega com festiva “acelera-desacelera”, punk-funk-reggae, “Here Comes The Night Time”. E é para isto que os Arcade Fire nasceram. E onde nos perguntam, uma vez mais se este é o paraíso que nos prometeram e se este mesmo paraíso não tem música para que é que serve? E com isso chega a noite (escuridão). E começamos a desvendar um bocado mais o tema de Reflektor. Do alienamento que se vive hoje em dia com a nova tecnologia onde podemos ter milhares de amigos online e viver uma vida completamente solitária, onde nos apaixonamos em frente a um computador e ao nosso lado não temos ninguém para partilhar vivências e cada vez é tudo mais exposto mas ao mesmo tempo negado. O que nos leva a perguntar se seremos uma “Normal Person”.
Reflektor continua a sua senda com outro potencial êxito “You Already Know”. Mais uma típica faixa da banda canadiana que poderia perfeitamente ser cantada por David Bowie. O primeiro disco acaba com a roqueira “Joan of Arc” que vai um pouco ao encontro de “Month of May” e onde Win Butler faz um elogio a todas as “Joana d’Arc” deste mundo que perseguem o seu sonho ou “destino” contra todos os que constantemente criticam ou tentam criar barreiras.
Ao acabar o primeiro LP ficamos completamente rendidos a Reflektor. Nada poderia dar errado. Curioso é o facto de hoje em dia a experiência de ouvir um álbum duplo ser completamente diferente do que era antes do mp3. Hoje não nos apercebemos quando acaba um disco e outro começa. Primeiro porque em formato digital perde-se o aspecto visual de trocar de disco mas também no vinil esse ritual tornou-se diferente pois muitos álbuns hoje em dia são divididos em dois para melhor qualidade auditiva e confesso que pela primeira vez em muitos anos pensei ter a experiência de ouvir um álbum pela primeira vez quando o comprasse e o pusesse a tocar na aparelhagem exactamente como se fazia antes da revolução do mp3. Isto porque a banda conseguiu adiar quase até ao último instante a partilha do disco pela internet. E até nisso a banda criou uma ansiedade crescente culminando numa “quase notícia” pelas redes sociais que o álbum estava finalmente acessível para audição na internet.
Gorada a expectativa de o ouvir como mandam as leis, rapidamente o ouvi de uma ponta a outra e confesso não ter dado pela divisão dos dois discos pois como já foi referido são apenas 13 músicas, embora longas.
Ora o segundo LP começa com uma reprise de “Here Comes The Night Time” desta vez num tom muito mais soturno levando àquela que para mim é a música mais fraca deste Reflektor, curiosamente chamada “Awful Sound (Oh Eurydice)”. Se já tínhamos tido toques de Rolling Stones ou Michael Jackson, agora é Axl Rose e companhia que dominam nesta música regada a “November Rain”. Para esquecer.
Felizmente Win Butler e os Arcade Fire recompõem-se logo em “It’s Never Over (Oh Orpheus)” e mais não perdem o caminho e superam-se com “Afterlife”, o ponto mais alto da segunda parte de Reflektor que acaba com a doce electrónica de “Supersymmetry” onde Win e Regine voltam a dividir as vozes.
O álbum acaba e finalmente descobrimos que Reflektor é uma ode a Orfeu, filho de Apolo (capa do disco), músico genial que ao descobrir que a sua amada, Eurídice, tinha morrido de uma mordida de cobra, tocou uma música para Hades o deixar entrar no submundo para resgatar a sua amada com a condição de este nunca olhar para trás para ver se ela o seguia até chegar a terra. A sua ansiedade era tanta que o acabou por o fazer perdendo Eurícide para todo o sempre. E desde aí que se diz que sempre que alguém toca ou canta uma canção dedicada a um amor perdido é visitado pelo espírito de Orpheu. E é essa alegoria que os Arcade Fire tentam fazer chegar, num jogo de espelhos e ilusões, onde o tribal, primitivo se funde ao mundo moderno, à electrónica.
Funeral foi há quase dez anos, e de lá para cá a banda cimentou a sua posição sem perder criatividade nem vontade de criar. Em dez anos, quatro grandes discos.
O paraíso (ainda) é deles…