Um dia depois do Samhain, o paganismo voltou a descer do norte da Europa para interromper e abanar a nossa quietude sulista. Na noite de 2 de novembro, o intenso feitiço de Anna von Hausswolff foi projetado do primeiro ao último momento. Hora e meia depois do início, todos saímos pela mesma porta onde entramos – mas aí já ninguém era o mesmo.
A cantora e multi-instrumentista sueca Anna von Hausswolff lançou, em março deste ano, o fantástico Dead Magic. Foi com esse pretexto que se deu a sua passagem por Coimbra, na Igreja do Convento de São Francisco. Ora, bem se sabe que, às vezes, a localização de um concerto é metade da razão para se querer ir. Há certas combinações local-artista que, depois de imaginadas, idealizamos ao ponto de determinado acontecimento se tornar, para nós, imperdível. Para mim, esta foi uma dessas vezes e o facto é que, nesta noite, se deu algo verdadeiramente único.
O encontro entre o sagrado e o profano estava marcado para as 21:30h. Pouco depois da hora, e perante uma plateia bem composta, entraram em palco cinco músicos e, no final da coluna de homens, ela, a outra metade da razão que me levara àquele sítio: Anna von Hausswolff. As primeiras notas de “The Truth, The Glow, The Fall” pintaram a paisagem e, assim que a voz da cantora sueca começou a reverberar pelas paredes daquele antigo local de culto, a magia começou a fluir. Depois desta bonita viagem em três andamentos, o público já estava mais do que conquistado – e os urros de aclamação mostraram isso mesmo.
De seguida, Anna regressou brevemente a The Miraculous, antecessor de Dead Magic, para escutar uma versão mais crua e elétrica de “Pomperipossa” (cujo título é, também, o nome da editora da sueca). Depois dos 15 minutos que durara a canção inicial, esta foi uma ótima forma de deixar o público respirar e uma ainda melhor introdução para o primeiro grande momento do espetáculo. Ninguém estava preparado para “Ugly and Vengeful”. Lenta e dolorosamente, a canção foi progredindo, com a agonia que o nome da faixa permite antever a tornar-se mais pesada a cada momento. Carregada de dor e fúria, a voz soprano de Anna von Hausswolff parecia querer algo mais do que cantar: assemelhava-se a um grito de guerra. Então, a meio da peça, o instrumental imenso, que ecoava como que por um fiorde, foi cortado tambor portentoso. Enquanto a batida ancestral e primitiva nos vergava como um vento gélido numa tempestade, por entre as nuvens abriram-se as portas de Valhalla. Sob o comando do seu canto, o exército da valquíria Hausswolff estava ali pronto para trinchar os demónios de todos os presentes. O drone hipnótico e violento sonorizava a batalha interior e, no final, catarse foi o resultado.
Após a surpreendentemente intensa experiência de “Ugly and Vengeful”, Anna von Hausswolff e companhia apresentaram duas faixas que permitiram acalmar os ânimos e processar o que até então se tinha passado. Primeiro, “The Marble Eye”, uma misteriosa faixa ambient constituída por uma linha aterradora de órgão, passeou soturna pela sala. Em seguida, “Källans återuppståndelse”, a belíssima faixa que encerra o último disco da artista sueca, casou particularmente bem com a acústica da igreja, conjurando paisagens da vasta floresta nórdica, com pinheiros altos a perder de vista envoltos numa leve neblina, onde a voz angelical de Anna surgiu como um rio a entrecortar suavemente as árvores.
Depois de um agradecimento extenso ao público, a cantora dedicou a enorme e pesada “The Mysterious Vanishing of Electra” a todos os que já tinham perdido alguém querido. A marcha fúnebre, reminescente do trabalho mais recente dos Swans de Michael Gira, é quase um hino de luto. Houve negação, fúria, negociação e depressão. Contudo, a aceitação só veio depois da intensa “Come Wonder With Me / Deliverance”, que encerrou a primeira parte do concerto. Esta faixa acabou por protagonizar a parte mais violenta do concerto. Durante 10 minutos, a tensão foi acumulando e até se tornar quase tão pesada como as paredes da igreja. A voz operática e mágica de Anna von Hasusswolff deu voz ao furioso mar de som ali criado, com algumas influências de doom e black metal a alimentarem um redemoinho brutal e quase assassino. No final da tempestade, brilhou o sol e ninguém ficou agarrado à cadeira: Anna von Hausswolff e companhia granjearam facilmente uma ovação de pé por parte da plateia.
Cumprida a praxe, a sueca regressou ao palco e apresentou a banda e congratulou a equipa técnica, que através de um som fantástico e jogos de luzes geniais ajudaram a manter a magia viva durante todo o decurso do espetáculo. Num encore arrasador, Anna von Hausswolff ofereceu-nos aquela que é, provavelmente, a música mais bonita do seu repertório (faixa que, neste momento, não tem versão de estúdio). Em “Gösta”, Anna lançou-nos o encantamento final: leve como o ar, caminhou no meio do público e deixou-nos frementes com a sua deslumbrante e irrepreensível voz. E estava findado o ritual.
Durante a cerimónia, as influências mais cruas e negras de Anna von Hausswolff – que, em disco, não permeiam tão evidentemente a darkwave neo-clássica da sueca –, fizeram-se ouvir bem e alto. Desde o drone dos Sunn O))) à fase mais black metal de Chelsea Wolfe, tudo sobressai nos arranjos interpretados ao vivo. Contudo, é impossível colar a sueca a qualquer uma destas referências: a sensibilidade que imprime às suas composições é, de facto, ímpar. Além disto, embora seja uma instrumentista muito boa, é sobretudo o seu aparelho vocal e a forma como o utiliza que contribui para criar uma magia única. É assim o mundo sobrenatural, triste, furioso, assombroso, sereno e belo da arte de Anna von Hausswolff. Presenceá-lo ao vivo é um enorme prazer: desafiante a um nível emocional como poucos concertos são, Anna deixa-nos assim, de coração partido, mas cheio.