Há mais de uma década que ouvimos a voz e o nome dela. Nos mais diversos contextos, Selma Uamusse, tem vindo a encantar, em bandas como Cacique 97 ou Wraygunn, como convidada de Samuel Úria, Medeiros/Lucas, Joana Barra Vaz ou Rodrigo Leão – mas agora está na hora de mostrar a sua própria música. O álbum de estreia, em nome próprio, está para breve e nas próximas linhas, ficamos a saber tudo o que importa sobre a concepção do álbum, as raízes moçambicanas, a influência da maternidade. E ficamos com grande ânsia de ouvir este disco, ao vivo no dia 10 de Setembro, no Magafest.
Depois de vários anos a trabalhar na “música dos outros”, estás prestes a lançar o teu primeiro disco. Quando é que decidiste avançar para a tua própria música?
Não foi uma decisão muito consciente, primeiro porque a decisão de ser cantora também não foi nada consciente, para mim o saber cantar mais ou menos – que é aquilo que eu acho que faço – era eventualmente algo que me parecia muito natural. Eu venho de uma família, embora não haja nenhum artista, em que sempre tivemos o hábito de cantar, dançar, por isso quando me diziam que devia apostar na música eu achava que era tipo “isso toda a gente faz”, portanto era algo que me era natural. Acaba por acontecer depois de uma série de convites e de colaborações que eu fui fazendo, enquanto estudava engenharia e fazia as duas coisas, acaba por acontecer duma maneira mais ou menos espontânea quando eu sou mãe pela primeira vez – comecei a cantar em 1998/99 – fui mãe em 2010, acho que é uma altura em que pensamos um bocadinho sobre o que é que realmente queremos na vida, e eu na altura estava com bastante trabalho e tinha que decidir se cantava, se era mãe, se era engenheira – porque não conseguia fazer as três coisas ao mesmo tempo. Então quando eu me torno mãe, decido que quero ser cantora, só, opto pela carreira musical. E quando tenho a segunda filha – as minhas filhas são muito inspiradoras – é a altura em que em sinto “bom, já que decidi ser cantora, acho que faz algum sentido começar a pensar o que é que eu quero fazer, o que é que eu tenho a dizer ao mundo sobre mim, e qual é que é a canção que existe no meu coração, que eu quero deixar ao mundo”. Portanto, resumindo, eu decidi ter uma carreira a solo há quatro anos, não só quando fui mãe, mas também quando fui desafiada pelo Alcides Nascimento, que é filho do Bana, que já me tinha ouvido cantar muitas coisas e convidou-me a fazer uma pequena programação no B.Leza. Quando ele me perguntou se eu queria fazer alguma coisa a solo, desafiou-me a ir buscar alguma coisa às minhas raízes. E eu aí comecei a pensar um bocadinho nas coisas que eu fazia, no tributo à Nina Simone, fiz algumas homenagens à Miriam Makeba, e comecei a sentir que de facto, em todas as coisas que eu fazia, havia sempre um transporte do meu lado mais moçambicano, fosse para o gospel, fosse para os Wraygunn, havia sempre este lado um bocadinho mais de “terra”, que eu senti que fazia todo o sentido trazê-lo.
Além da carreira com os Wraygunn, nos últimos tempos trabalhaste com Medeiros/Lucas, Samuel Úria, mais recentemente com o Rodrigo Leão. O que é que aprendeste com eles e retiraste para a tua música a solo?
Obviamente aprendi imenso. O Samuel é uma pessoa que eu admiro, antes de sermos amigos já o admirava pela maneira como ele escreve e pela maneira como ele consegue transmitir muito bem, e sem chocar, um nível de espiritualidade elevadíssimo, que leva muitas vezes a que as pessoas não percebam bem o que ele está a dizer mas que se sintam tocadas, e eu acho que essa é a enorme magia que o Samuel tem na forma como escreve, toca as pessoas mesmo que elas não compreendam exactamente.
No caso do Rodrigo Leão foi, antes de mais, surpresa. Mas o que queria dizer é que o que eu mais gosto em todos estes artistas é que eles me dão toda a liberdade para eu ser eu própria. Embora eu tenha muitas vozes – sei que vou tendo, por aquilo que fui aprendendo, mas a minha maior escola é o gospel – em todas estas experiências, aquilo que eu mais aprendi era que a minha maior valência era ser eu própria. Portanto, quando eu estou a cantar com o Rodrigo, embora seja noutro registo, eu não sinto necessidade de me expor menos. O Rodrigo teve a imensa amabilidade de fazer um arranjo para uma música minha e isso deu-me ainda mais liberdade para me sentir à vontade num concerto dele. E o que me alegra muito é que são pessoas que já ouviram a minha música e me convidaram por isso.
De uma maneira muito pontual – eu acho que aprendi a ter mais jogo de cintura. Com o Paulo Furtado aprendi a ter bastante ousadia em palco, a não ter medo das pessoas. Com o gospel aprendi que é possível mudar o estado emocional e espiritual das pessoas. Com o Rodrigo aprendi a conseguir mostrar a minha voz da maneira mais contida possível. Com o Samuel, que é uma pessoa que me é muito próxima, tenho aprendido muito sobre esta questão da espiritualidade e de como a transmitir. Com o [Pedro] Lucas, no caso de Medeiros/Lucas, ainda estou a tentar perceber, porque ele é uma pessoa muito especial, acho que ele é genial, e não sendo possível para mim de lhe colocar uma etiqueta, e com as várias sensibilidades que ele tem, sinto que ainda é uma pessoa com quem tenho muita coisa para aprender. O nosso processo no disco foi muito por acaso, nós trabalhamos na mesma agência, o meu director musical também trabalha com ele e de repente surgiu ali um convite, nós não nos conhecíamos, eu ouvi a música e pensei “isto é muita esquisito, não faço a mínima ideia do que é que hei-de fazer aqui”, fui para estúdio sem o conhecer, conhecemo-nos em estúdio, ele nunca me tinha ouvido nem eu a ele, e eu lembro-me muito bem de o Pedro Lucas estar a ouvir na régie e de me dizer “tu pareces a Billie Holiday, isto é super melódico, mas a nossa música não é nada assim”. Gosto muito dele, tenho uma enorme admiração e sei que ainda tenho muita coisa para aprender com ele.
Nessas músicas em que participas, a Úria e de Medeiros/Lucas, cantas em registos completamente diferentes, numa amplitude vocal enorme. No teu disco a solo, de que forma usas essa amplitude?
Eu não faço questão nenhuma de mostrar qualquer virtuosismo ou trapezismo da minha voz no disco. Mais do que colocações vocais, há uma questão de statement de som, de sonoridades, de ritmos, e portanto este disco fala de ritmos moçambicanos – porque eu tentei estudar a diversidade imensa dos ritmos tradicionais moçambicanos, pegar nalguns instrumentos tradicionais, como a timbila e a mbira, e fundi-los com a minha voz. A minha voz é só mais um instrumento e portanto estou um bocado mais preocupada com o som e com aquilo que digo, do que propriamente em mostrar que sou uma cantora que consegue cantar em registos graves e agudos. Gostava que as pessoas sentissem alguma simplicidade, porque não se trata de provar nada. Obviamente que eu já estou a cantar há muito tempo e tenho feito, felizmente, coisas muito bonitas com pessoas muito especiais e percebo que existe alguma expectativa. Mas também decidi que não podia estar muito preocupada com isto e sabia que o lado se calhar mais fácil de mostrar seria a voz, mas o disco não é assim. Eventualmente, trabalho mais esse lado nos espectáculos ao vivo, o disco em si é um bocadinho o levantar de uma bandeira, que eu não sabia muito bem – sendo moçambicana, a viver em Portugal desde 1988 mas não tendo a nacionalidade portuguesa, qual é que era a bandeira que eu teria que levantar. E é muito fácil perceber, agora, que a minha bandeira é global e eu não preciso de ser nem moçambicana nem portuguesa, só preciso de ser a Selma Uamusse.
Então o teu disco, para quem o ouve em Portugal, será uma espécie de introdução à música de Moçambique?
Eu acho que a música moçambicana é muito pouco conhecida, eu própria conhecia muito pouco, mas é muito rica. Eu fiz parte dos Cacique 97, o afrobeat foi assim a minha primeira abordagem ao outro lado da música africana, que não é nem a tradicional nem aquela que é mais comercial, portanto um rasgar da nova música africana enquanto movimento revolucionário, e comecei a pensar que há há muitos músicos conhecidos da Nigéria, do Senegal, Cabo Verde, mas não há assim tantos artistas moçambicanos que sejam conhecidos por fazerem música de raíz. Eu vou todos os anos a Moçambique de férias e numa estadia mais prolongada, estive lá 2 meses, decidi pedir a um grande músico que é o Cheni wa Gune, que faz parte de uma banda incrível que são os Timbila Muzimba, para me dar aulas de timbila. E então comecei, entretanto decidi comprar uma mbira e começou a vir imensa magia, adoro estes sons, e pensei como é que eu posso fazer ritmos moçambicanos e transportá-los para a minha música, fundindo um bocado com aquilo que eu tinha estado a aprender nos outros sítios, especialmente no jazz. E então vem daí, vem do explorar um lado, que poderia ser de alguma modernidade, com algo que era tradicional e que de alguma maneira honrasse aquilo que são as minhas origens, mas sem desvirtuar quem eu sou, por isso é um disco em que eu canto em inglês, em português, em changana, em chopi, exactamente porque chego à conclusão de que eu não preciso sequer de compreender ou de falar fluentemente uma língua para poder trazer emoção àquilo que canto.
Já percebi que o disco assenta em ritmos muito fortes, mas também em melodias, com a voz como mais um instrumento.
Quem ouve o primeiro single tem se calhar a expectativa de que o disco seja todo “em cima”, mas não é. Quando eu falo de ritmos, eles não têm de ser necessariamente muito dançáveis e há momentos em que há muito espaço vazio, mas há muito espaço para os instrumentos, em detrimento da voz, e depois momentos em que a voz está quase sozinha, só com uma mbira e poucos elementos. Eu estou muito ansiosa, o disco tem sido um “parto prolongado”, passou por muitos processos, mas eu estou feliz que tenha demorado assim tanto tempo, fui amadurecendo muito aquilo que era de facto a minha sonoridade. Porque no início não estava muito prepcupada, só queria era fazer, deixem-me fazer. E hoje em dia sinto que tenho as ideias muito mais amadurecidas em relação àquilo que quero transmitir e como quero transmitir.
Quão a solo é este disco? Tens músicos a tocar contigo, eles também contribuiram na composição das canções ou foi tudo concebido por ti?
Eu tenho um grupo muito simpático, somos 4 pessoas, e se o projecto se chama Selma Uamusse, é Selma Uamusse enquanto banda, mais do que eu a solo. Obviamente que fui eu que lancei o mote de trazer a raíz moçambicana – os músicos são todos portugueses – fui eu que trouxe os instrumentos, as línguas, sou eu que faço as melodias e escrevo as letras. Mas no que diz respeito à sonoridade final, ela é muito trabalhada em sede de banda, sendo que o principal colaborador é o Augusto Macedo (que trabalha também com o Medeiros/Lucas), e é uma banda com quem eu já fiz imensas coisas, no gospel, é a minha primeira banda do meu primeiro projecto, Soul Divers, e é a banda com quem fiz o meu primeiro projecto de jazz – Selma Uamusse New Jazz Ensemble – é a banda do tributo à Nina Simone, portanto é a banda que me conhece desde sempre e que me vai acompanhando nas minhas maluqueiras e deambulações, mas que faz todo o sentido. O Nataniel Melo, percussionista, toca também com Terrakota, é a pessoa que melhor conhece a linguagem de que estou a falar, ele é um estudioso, conhece imensos ritmos africanos, faz os seus instrumentos, está muito por dentro daquilo que é a musicalidade onde eu vou beber. O Augusto Macedo é o meu braço direito, ele é que compõe comigo, peço-lhe muitas vezes ajuda para ideias que tenho e ele aparece com músicas, para as quais eu depois faço as melodias e as letras. O Gonçalo Santos, sendo o baterista, também toca baixo, à partida podia ser a pessoa mais distanciada daquilo que são estas sonoridades, mas é o nosso protector, chega lá e faz aquilo que é preciso. Portanto, nós conhecemo-nos muito bem e ficamos muito contentes por podermos estar juntos a fazer isto, sentimo-nos todos crescidos e felizes por estar a fazer um projecto que, não sendo genial, é original, pelas suas várias facetas, e isso é muito fixe.
Já disseste que cantas em várias línguas, além de português e inglês…
Sim, changana e chopi são línguas do sul de Moçambique. E na língua que for preciso. Eu lembro-me sempre dos Sigur Rós, na questão de inventarem quase uma língua – e sendo a língua uma coisa muito importante, ainda há bocado falava do Samuel Úria, que é uma pessoa muito da Língua, tem sempre uma palavra especial para descrever algo. Sendo a língua e a expressão oral muito ligada à expressão escrita, eu sinto que, sabendo aquilo que estou a dizer, se me derem uma letra para cantar, em francês ou italiano ou noutra língua qualquer, e se eu achar que ela é musical, irei sempre cantá-la. É curioso, sinto isto também na música do Rodrigo Leão – que sendo algo mais cinematográfico, ele tem letras em muitas línguas e muitas vezes nos concertos dele eu canto em diferentes línguas – não é indissociável nem improvável nem esquisito, tem é de ser coerente.
Nas tuas canções há letras e tens coisas a dizer, mas algumas são em línguas que não conheço. De que falas?
Os três eventuais singles, falam de três coisas determinantes para mim. Uma é a questão do trabalho, o single é uma música de trabalho que diz pura e simplesmente “está a chover, é altura de irmos semear, para depois colher, depois de muito esforço empenhado, mas em conjunto”. Esta questão da união e de fazer as coisas em conjunto é algo que é muito importante para mim, eu acho que nós não somos, não fazemos nada sozinhos e ainda que, de uma maneira isolada, as pessoas possam ser geniais, se não houver ninguém para ouvir, para apoiar, a música não chega às pessoas, se não trabalharmos juntos para que as coisas sejam diferentes, não chegamos lá. E esta música [“Ngono Utana”] fala sobre esta alegria de colher os frutos, depois de um trabalho muito árduo e depois de esperar pelo próximo período. Ela tem um sentido entre o filosófico e introspectivo, em relação ao que foi o meu percurso, mas eu acho que é uma música em que eu procuro transmitir que se trata de união, de trabalhar em união. Também é uma espécie de tributo à parábola do semeador.
Existe um outro tema que é o “Song of Africa”, que é muito bonito e que me foi dado pela Susana Travassos, e que fala daquela questão da bandeira, é uma questão que eu me tenho colocado, eu vivo há tanto tempo aqui na Europa, será que os meus, aqueles que eu considero “meus” conhecem a canção que existe no meu coração? Porque eu tenho feito tantas coisas e não preciso de ter um coração que seja identificado só com uma nação. Esta música faz uma viagem ao meu umbigo e fala sobre todas as coisas de Moçambique que eu preciso de me recordar – o cheiro da terra molhada, o calor. Portanto, trabalho, casa – Moçambique e esta questão identitária – e como é óbvio, o meu lado muito espiritual, tudo aquilo que eu faço e o que pretendo transmitir, alegria, amor, atitude positiva em relação à vida, tem a ver com aquilo que é a minha missão aqui na Terra, e aquilo que eu sinto que Deus me deu enquanto dom, que eu fui trabalhando para tocar a vida das pessoas, e o lado de gratidão por tudo aquilo que tenho, tudo o que sou, tudo o que me inspira e por acreditar verdadeiramente que tudo vem de Deus e tudo para lá caminha. São assim os meus três lados, acho que todas as coisas são triangulares, interessa-me as trilogias, então o disco é isto: espiritualidade,trabalho e identidade. Não tenho muitas letras de amor, paixão, acho que isso são coisas mais passageiras, prefiro falar de coisas mais eternas.
E quando sai o disco?
Já teve muitas datas e portanto não quero lançar nenhum boato. Quanto tocarmos no Magafest já vamos estar a apresentar o disco, eu espero que saia em Outubro/Novembro, mas não quero desiludir ninguém, prefiro fazer algum suspense.
Ao vivo já vais tocar o disco todo?
Todo, todo não digo, mas pelo menos umas 8 canções, o disco tem 11. Aliás, as Magasessions, antes do do Magafest, já foram um pequeno grande laboratório deste projecto, enquanto Selma Uamusse, nós já tocámos algum repertório nessas sessões. Então estou muito contente de podermos fazer o Magafest e apresentar, já de uma maneira mais sólida, um repertório que apresentámos em casa dos Magalhães, de uma maneira muito descontraída e despreocupada, mas cheia de instrumentos.
E como funciona este disco ao vivo?
Eu em palco dou sempre muito, mas se as pessoas me estiverem a dar imenso ou muito ou um bocadinho, eu vou atrás daquilo que as pessoas me vão transmitindo. Gosto de ter proximidade, fico triste às vezes quando os palcos são muito grandes e não consigo ter proximidade, mas vou tentando fazer por isso, peço para ir para o meio das pessoas. Mas acima de tudo, como os músicos me conhecem muito bem, entram no meu processo criativo e há muitas coisas que acontecem em concerto e que são muito bonitas mas que nunca mais voltamos a fazer, não apenas aquilo que eu faço no palco mas também musicalmente, eles também se deixam seguir por isto, improvisam, e eu canto coisas diferentes e invento letras, portanto há um lado muito orgânico nos concertos.