Cá em cima mal se nota, mas lá em baixo, nas condutas subterrâneas onde as coisas realmente interessantes acontecem, a nossa cena de rock instrumental e experimental é surpreendentemente grande (esqueçam Mogwai, os nossos são ainda melhores). “O Quarto Fantasma”, trio de Lisboa constituído por André Góis e Paulo Diogo na guitarra e nas teclas, e o meu amigo Jorge Trigo na bateria, fazem parte desta efervescente cena, daquilo a que se convencionou chamar pós-rock, rótulo que a banda (e bem) considera redutor. Aproveitando o pretexto de terem lançado há pouco o seu primeiro álbum, A Sombra (gravado e misturado pelo norte-americano Chris Common, que já gravou Minus the Bear, Omar Rodríguez López e os PAUS), estivemos à conversa com “O Quarto Fantasma” no próprio local do crime: uma garagem literalmente underground onde a banda ensaia. Desçamos para lá.
ALTAMONT: Vocês são um trio de rock experimental e sobretudo instrumental. Têm duas guitarras, bateria e não têm baixo. Dentro da estrutura tradicional do rock, vocês têm já duas coisas invulgares: não têm nem baixo nem nenhum “frontman” para dar a voz. Porque é que foram por aí?
ANDRÉ: Não foi uma opção. Juntámo-nos todos para tocar um dia, numa bela tarde. Já tínhamos tocado noutros projectos, alguns deles comuns, e a parte do improviso sempre funcionou muito bem entre nós. Combinámos um dia ir tocar e resultou tão bem que algumas músicas que hoje tocamos nasceram desse primeiro dia. Não ligámos microfones, ninguém estava a cantar, aquilo funcionou e o que fizemos os três naquele dia foi o que definiu um bocado o som.
ALTAMONT: Foi então uma coisa acidental. Não era um programa pré-definido.
ANDRÉ: Acidental ou experimental porque são duas coisas que estão relacionadas.
ALTAMONT: A vossa música tem pouca estrutura de canção, tendo uma forma mais atípica. Nas vossas referências, também existe esse lado mais convencional, mais canção?
ANDRÉ: Sim, todos nós ouvimos isso. Aliás, tens aqui dois exemplos (aponta para os posters de parede dos Nirvana e do Jimi Hendrix). Ambos faziam canções. E ali atrás está o Page (Jimmy). Acho que a resposta é um bocado a mesma do que a anterior. Isso tem a ver com o ser um improviso porque normalmente os temas nascem de chegarmos à sala de ensaio, começarmos a tocar e as coisas vão aparecendo das respostas uns aos outros e depois os temas são quase uma espécie de best of dos improvisos que se fizeram. De certeza que já se perderam coisas brutais.
ALTAMONT: Dentro desse registo instrumental e experimental, daquilo que se convencionou chamar – e se calhar vocês não gostam do rótulo – de pós-rock, vocês também ouvem e identificam-se com algumas bandas?
JORGE: Tenho que ser sincero. Eu agora tento fugir um bocado a isso. Falávamos no outro dia de bandas pós-rock como os Explosions in the sky, os Mogwai e os Godspeed (you! Black Emperor), e de outras bandas que eu não conhecia como os Destroyalldreamers e os Air Formation e, sinceramente, tento fugir um bocado disso ao nível da audição. Não é bom estar numa banda que tem momentos pós-rock e depois só ouvir pós-rock.
ANDRÉ: Um bocado como aquela máxima: “não queres pertencer a um clube que te queira como membro”.
ALTAMONT: Quando vocês começaram, já ouviam essas bandas? Ou foi uma coisa a posteriori, do tipo: “curioso, estes tipos também tocam uma coisa parecida com a nossa”?
PAULO: Eu acho que da banda sou o que mais gosta de pós-rock e já ouço Explosions, Mogwai e Godspeed há muito tempo.
ALTAMONT: Então esse nicho é mais da tua parte?
PAULO: Estamos a falar de gosto pessoal mas os nossos gostos pessoais acabam por extravasar: são influências daquilo que nós tocamos.
ANDRÉ: Às vezes há soluções musicais que são interessantes. O post-rock é um bocado abrangente. Tu vais à Wikipédia procurar post-rock e no início aparecem-te duas bandas: os Tortoise e os Godspeed, que são dois sons completamente diferentes. Por acaso, eu acho ambas as bandas muito interessantes e às vezes o que pode acontecer é achares apelativo um determinado som na guitarra (ou às vezes não é tanto o som, é mais uma técnica) e podes incorporar isso numa espécie de palete de soluções que tu tens e que em alguns temas podes usar.
PAULO: Mas é mesmo como o Jorge diz: acho que em nós o rótulo do post-rock não se aplica no geral. Mas sem dúvida nenhuma que temos momentos post-rock em algumas músicas.
ANDRÉ: É um estilo que ultimamente até está muito definido. Mogwai e Explosions (in the Sky) e os demais têm já os temas quase formatados: é suposto começar de uma determinada maneira, ter x minutos e acabar daquela maneira.
ALTAMONT: De alguma forma foi como se o post-rock tivesse reagido ao espartilho do rock convencional mas depois acabasse por cair numa nova camisa-de-forças?
PAULO: Sim, é esse o problema dos rótulos.
ANDRÉ: Sim, já há uma convenção do que é suposto ser o post-rock, o que é estranho porque os originais não tinham isso. Godspeed era tipo música de câmara tocada com instrumentos rock e os Tortoise estão algures entre o jazz e o rock.
JORGE: Se calhar a razão principal para não ouvir muito dessa música é que muitas vezes a acho aborrecida. Um tipo está a ouvir uma banda que supostamente é post-rock e aparece a tal fórmula (é suposto ser assim e assim) e isso a mim aborrece-me. A nossa banda também tem um bocado a ver com esse individualismo. Aliás, “O Quarto Fantasma” deriva daí: o todo é mais do que a soma das partes.
ALTAMONT: Vamos então à origem do vosso nome, que é muito apelativo. Já está aqui uma explicação: vocês são um trio pelo que o quarto elemento será o que resulta da vossa conjunção.
ANDRÉ: É uma explicação. E também gostamos muito do facto de o nome ser ambíguo, de estar aberto à interpretação, que é uma coisa que a música também tem, talvez pelo facto de ser instrumental. Dá muito espaço para a pessoa fazer o filme na cabeça.
ALTAMONT: Uma das sugestões do nome remete para um lado um bocado sombrio e o próprio design do disco (A Sombra), soturno e a preto e branco, remete para aí. Foi algo intencional?
PAULO: Acho que é a resposta às músicas. Elas são assim. Não é alegre. Não é ska.
ANDRÉ: Já uma vez nos perguntaram isso. Acho que é um bocado redutor ver as coisas em termos de triste ou alegre. Há tanta coisa no meio. E diferente. Tu podes sentir raiva, podes sentir uma euforia que não é necessariamente contente…
ALTAMONT: E vocês gostam de explorar várias tonalidades emocionais?
PAULO: Sim, a dinâmica é para nós o mais importante, que valorizamos e trabalhamos imenso. Para desenvolveres diferentes estados emocionais. O espectáculo tem muitos momentos diferentes.
ALTAMONT: Nos sons que procuram, parece-me que dão muita importância ao detalhe. Se bem que perceba que não queiram ficar prisioneiros de uma identidade post-rock, se calhar uma das coisas que caracteriza algumas dessas bandas é essa atenção pelo detalhe, pela textura, pelo timbre e a exploração desses pequenos pormenores. Essa coisa quase cirúrgica…
PAULO: Nós prestamos muita atenção aos efeitos. Nós temos sons dentro da cabeça que queremos trazer cá para fora.
ALTAMONT: São muito tecnicistas. Têm um domínio muito apurado dos vossos instrumentos e das suas potencialidades.
PAULO: Eu não sei o que é tecnicismo. Se o tecnicismo for na onda do virtuosismo, nem por isso. Mas eu sei que naquele bocado daquela música eu quero aquele som e noutra parte, em que estou a sentir outra coisa, quero um som diferente e então tenho de arranjar um método de lá chegar, seja pela guitarra, pelo amplificador ou pelos pedais.
ALTAMONT: Nos vídeos do vosso single “Arder” e na “Rumores” (gravadas em 2011), que acabaram por revisitar neste álbum, aparece um gravador antigo de bobines. Isso é algum statement de alguma paixão por tecnologia antiga, ainda analógica?
ANDRÉ: Sim, há aí essa recuperação. Se bem que usamos também alguma tecnologia digital, mas mais em pormenores que incorporamos na música. Depois de termos a base de uma música, surge um espaço onde era fixe ter aqui um som que preenchesse esse bocado. Já andámos aí pela rua com um microfone a apanhar coisas e depois aquilo é tratado no computador e a gente está a tocar e naquele sítio exacto carrega e puxa aquele som. Também temos uma música que fizemos que está no álbum, “Quem de mim”, que é feita à volta de um poema. Uma amiga nossa, a Catarina Nunes de Almeida, que é poetisa, lançou um livro e convidou-nos para tocar no lançamento do livro. Nós fizemos o tema, acabámos por ficar satisfeitos com o seu resultado e tivemos outra amiga nossa, que é actriz, a Catarina Rosa, que gravou o texto, fez algumas versões da leitura, nós fizemos a composição final, introduzimo-la na música e depois ao vivo vamos lançando a leitura que ela faz nos sítios exactos onde queremos que apareçam.
PAULO: Ou seja, usamos o analógico mas não descartamos o digital.
ANDRÉ: Agora, a nível de som de guitarra vamos buscar muito ao analógico. Fazemos ali uma espécie de ponte por cima dos anos oitenta. Há a música que vem detrás: a Motown, Otis Redding, mesmo os Beatles, os Led Zeppelin; depois chegamos ao final dos anos setenta e saltamos logo para o grunge. Sim, estamos a falar de amplificadores de válvulas, e tu nunca sabes se a válvula vai rebentar ou não, mas o risco também faz parte do rock and roll.
ALTAMONT: A produção – quer do vosso single de 2011, quer do vosso álbum – é vossa. Isso tem a ver com uma vontade de controlarem o vosso som?
ANDRÉ: Sim, nós somos muito chatos. Somos “control freaks”.
ALTAMONT: Não querem que um produtor, mesmo que afamado, interfira no vosso processo criativo?
JORGE: É verdade mas estamos abertos a que venha alguém sugerir.
ALTAMONT: E para serem os vossos próprios produtores, quer dizer que percebem do assunto.
ANDRÉ: Interessamo-nos pelo lado da gravação. Mas fizemos questão de gravar com alguém que sabe mais do assunto do que nós e porque é bom ter alguém de fora para a banda não estar tão preocupada e concentrar-se em tocar.
ALTAMONT: Há dois temas que revisitam agora em versões diferentes. Na nova “Arder” aparece um violino que dá à canção uma segunda melodia interessante.
ANDRÉ: Isso veio de em alguns espectáculos ao vivo termos levado a Maria do Mar (que foi quem gravou o violino), mais numa lógica de improviso. Resultou, gostámos da experiência e decidimos gravar esta nova versão, até porque não tínhamos ficado contentes a 100% com a gravação anterior, gravada também numas condições especiais, num tempo muito apertado. E, entretanto, ao vivo, já tínhamos controlado mais a dinâmica da música, estávamos mais satisfeitos e já tínhamos tocado ao vivo com violino, pelo que pensámos: “vamos agora pegar naquilo que foi feito, escrever a melodia do violino e gravar”.
ALTAMONT: O “Arder” é talvez a vossa canção mais melódica, a que mais entra no ouvido. Se vocês fossem uma banda de rock convencional seria um bocado o vosso hit. Imaginaria os vossos fãs a gritarem: “queremos o Arder”, como quem pede a canção mais famosa. Sentem isso?
JORGE: Ontem no showcase na Fnac do Vasco da Gama, quando o André anunciou a “Arder”, estava lá o meu filho que disse: “é a melhor!”. O André respondeu: “isso é discutível”. E isso mostra um bocado a nossa postura perante essa música. Concordo contigo mas esse destaque nem foi propositado nem nos revemos nele.
ANDRÉ: Essa canção apareceu naquele primeiro dia.
ALTAMONT: A canção não é propriamente “radio friendly” mas a melodia entra. Têm alguma coisa contra isso?
ANDRÉ: Não. Não somos anti-público ou anti-beleza ou qualquer coisa do género.
ALTAMONT: Não são como os Jesus & Mary Chain que tocavam de costas viradas para o público.
ANDRÉ: Não, nem temos complexos desse género. Há algumas bandas que eu sei que se a coisa está a ficar mais bonita, tem que ser destruída. A melodia é um valor importante, apesar de termos alguns temas mais rítmico e ruidosos.
ALTAMONT: A “Rumores”, que também foi revisitada, dá a sensação que agora está mais “metal” do que no single. É um riff poderoso, que imagino que ao vivo expluda.
JORGE: É mais implodir (risos).
ALTAMONT: Dá a sensação de haver alguma influência do “metal”, no sentido de ter guitarras agressivas. Qual é a vossa relação com o “metal”?
ANDRÉ: O Jorge é o mais “pesado”.
JORGE: Não temos baixo. O Paulo é que faz a maioria das tonalidades mais graves, ou pelo menos entrosamo-nos ritmicamente e acho que eu e ele é que puxamos mais para aí. O André nem tanto.
ANDRÉ: Não ouço “metal”. Pessoalmente, esse lado mais agressivo, é uma espécie de bypass ao “metal”; tem a mesma origem, tipo Black Sabbath ou Melvins. São as raízes do “metal”.
ALTAMONT: Não fazem uma afinação mais grave às guitarras?
ANDRÉ: Não, standard, o que é uma coisa que pode parecer surpreendente para alguns temas que soam cheios, ainda para mais sem baixo.
JORGE: Mas em relação à “Rumores” em concreto, esta nova versão do álbum tem uma secção no meio que puxa um bocado para aí. Mas acho que também tem a ver com a produção. Sempre que há uma produção mais refinada, passo a expressão, e quando é um rock agressivo, o pessoal pensa logo em “metal”. Eu quando ouço esta música penso sempre em Russian Circles. Acho que é uma banda que dentro do rock instrumental é mais “metal”.
ALTAMONT: O facto de terem alguém afamado por detrás da gravação do vosso disco, teve alguma repercussão no vosso som?
ANDRÉ: Acho que não. Foi muito complicado porque nós como temos muita dinâmica, queríamos que as partes calmas tivessem um som natural, quase como quem está a ver uma banda ao vivo, mas depois é difícil do ponto de vista de quem está a gravar a transição desses momentos para as coisas mais puxadas. É aí que entra o Chris Common. Sabíamos que ele ia conseguir dominar as coisas puxadas porque conhecíamos bem o trabalho dele e foi um bocado por causa disso que o escolhemos. A nível de influenciar o som da banda seria estranho porque a nossa maior preocupação (e houve momentos delicados a este respeito) era que aquilo não deixasse de soar ao que soava aqui dentro da sala.
PAULO: Há bandas que têm dificuldade de passar do álbum para o ao vivo e aqui a dificuldade foi a contrária: passar do ao vivo para o álbum.
ANDRÉ: Na primeira mistura que o Chris fez ficámos nervosos: começámos a ouvir efeitos na guitarra que não eram os nossos. E depois nós ficámos um bocado sem saber como é que íamos lidar com a situação. Acabámos por ir ter com ele e dissemos-lhe: “nós carregamos umas malas relativamente pesadas com pedais porque aquele som que está a sair do amplificador é aquele som que é”. Mas o Chris foi super-porreiro e pôs-nos completamente à vontade.
ALTAMONT: Nada parece por acaso. São perfeccionistas e muito criteriosos nas vossas escolhas.
ANDRÉ: Nós quando estamos a tocar aqui dentro demoramos muito tempo até decidirmos como fica o som.
PAULO: Acontece naturalmente e quando a coisa é fechada há uma razão para ser assim.
ALTAMONT: E a nível de carreira, vocês agora estão numa editora, a Raging Planet, que no circuito underground é uma editora que já começa a ter alguma relevância.
ANDRÉ: Eles já andam aí há uns anos.
ALTAMONT: Os Bizarra Locomotiva foram lá editados. Sentem isso a nível da vossa carreira como uma evolução?
ANDRÉ: É sempre bom estar associado a uma estrutura, estarmos associados a bandas que nós respeitamos.
ALTAMONT: Vocês pertencem ao Mar (Movimento Alternativo Rock). Expliquem -me o que é esse movimento e qual é a vossa relação com o mesmo.
PAULO: Nós já entrámos a meio do movimento. Houve ali um grupo de pessoas que tocavam em bandas diferentes, que em conversa chegaram à conclusão que tinham dificuldades semelhantes (para arranjar sítios para tocar, gravar, partilhar o material e tudo isso) pelo que se calhar unidos seria mais fácil chegar a determinados sítios. Em vez de cada banda se apresentar sozinha num determinado espaço, podiam organizar um concerto com duas ou três bandas, havendo assim mais pessoas a promover e a assistir aos concertos.
ANDRÉ: Eles viram um concerto nosso e convidaram-nos, num evento de homenagem ao Zeca Afonso.
ALTAMONT: Daí a vossa reinvenção da “Canção de Embalar” do Zeca.
PAULO: Nós fomos lá como convidados para tocar um tema, uma versão do Zeca Afonso. Passaram lá, viram, gostaram e convidaram-nos para ir lá tocar na semana a seguir, num concerto com mais algumas músicas. Não tínhamos quase músicas: a banda praticamente surgiu no dia 24 de Abril de 2010.
ALTAMONT: Véspera do 25 de Abril…
PAULO: Foi a primeira apresentação da banda. Se calhar estávamos a tocar desde Março. Era tudo muito recente e eles ajudaram-nos.
ALTAMONT: No festival “Milhões em Festa” em Barcelos há muitas bandas também de cariz instrumental. Estão a ter ali um nicho. O festival não tem só isso, tem também outro tipo de música mais underground de qualidade, mas há várias bandas excelentes nesse registo.
ANDRÉ: Aconteceu ali qualquer coisa em Barcelos.
ALTAMONT: O que é curioso acontecer numa cidade tão pequena. Vocês têm alguma relação com essa cena ou são-lhe completamente outsiders?
PAULO: Ainda não temos grande relação. Já temos pessoas comuns.
ANDRÉ: Seguimos com muito interesse.
PAULO: E esperamos para o ano ir lá tocar. O nosso álbum já saiu um bocado em cima.
ALTAMONT: Portanto, é natural que agora se estabeleça uma relação. Sentem alguma identificação com essa cena.
PAULO: Sim, sem dúvida nenhuma.
ALTAMONT: Bandas que lá tocaram como os The Allstar Project, La La La Ressonance, Sensible Soccers, Black Bombaim, Was an outsider, Memória de Peixe, são bandas que vos dizem alguma coisa?
ANDRÉ: Dentro do panorama português são das coisas que nós achamos mais interessantes dentro do género.
ALTAMONT: Apesar de terem em comum este cariz instrumental, são bandas muito diversas.
PAULO: Memória de Peixe e os Black Bombaim não têm nada a ver.
JORGE: Tive uma banda já há muitos anos que era uma espécie de fusão entre o jazz e o rock. E nessa altura como nós tocávamos instrumental, comecei a achar que nós não tínhamos lugar nem nos eventos de rock nem nos eventos de jazz, pelo que comecei a dedicar-me mais a explorar esse mundo de bandas instrumentais, especialmente lá fora porque na altura não conhecia cá muita coisa (conhecia Allstar Project e pouco mais). Hoje, isso democratizou-se completamente. Mesmo em Portugal, que é um país normalmente atrasado nestas coisas da cultura.
ANDRÉ: A net mudou tudo.
ALTAMONT: Para a nossa escala pequena de Portugal, é uma cena muito grande, pouco proporcional.
JORGE: Basta ver o que fizemos hoje na Avenida da Liberdade: nós ali a tocar um som rock agressivo, maioritariamente instrumental e experimental, e as pessoas que passavam paravam para nos ouvir.
ANDRÉ: A primeira vez que falámos com o Chris Common, ele disse-nos uma coisa engraçada sobre isso. Ele estava cá em Portugal há alguns meses, tinha gravado os PAUS e nós perguntámos-lhe: o que é que achas de Lisboa? E o tipo vinha de Seattle, que, especialmente para nós que crescemos nos anos 90, é uma coisa mítica. Ele não vinha desse meio do grunge mas tinha contacto directo ou indirecto com ele. Já tinha conhecido malta dos Pearl Jam. Aquilo é um meio grande, onde acontece muita coisa. Um dos últimos trabalhos que ele lá fez foi renovar a cabelagem do estúdio dos Pearl Jam. O pessoal é dali. Nós perguntámos-lhe como é Lisboa, se era uma pasmaceira. E ele: “antes pelo contrário, acho que estão a passar coisas mais interessantes em Lisboa do que em Seattle”.
PAULO: Acho que ele foi um querido mas pronto (risos).
JORGE: No outro dia estava a ouvir alguém a dizer que em termos de oferta estamos num momento espectacular a remar completamente contra a austeridade.
ANDRÉ: Mas depois o Chris Common disse – e esse é o calcanhar de Aquiles desta brincadeira – que estão a acontecer coisas muito interessantes em Portugal e que provavelmente se vão auto-extinguir porque não há escala para as coisas crescerem. Há um tecto muito baixinho onde a malta bate logo.
PAULO: É a grande diferença para os EUA: é a escala. Metem-se numa carrinha, dão a volta àquilo. Uma banda como nós é capaz de viver da música, mal ou bem. Podes passar fome um dia, comer no outro mas és capaz de estares um ano a fazer uma digressão pelos EUA.
ALTAMONT: Vocês perspectivam a possibilidade de viverem da música em Portugal?
ANDRÉ: Se acontecer, melhor, mas não conto com isso. Não estamos a contar com isso mas fazemos a coisa com a mesma entrega.
ALTAMONT: Não farão concessões para que isso aconteça.
ANDRÉ: A cena também é essa.
PAULO: Eu costumo dizer que esta é a nossa profissão e que durante um dia tenho um part-time.
JORGE: Era o que dizia o Hélio (baterista dos Linda Martini): que tinha um part-time de oito horas mas que a sua profissão era músico.
ALTAMONT-:E essa integridade estética não negociável é algo importante para vocês?
ANDRÉ: Nós estamos abertos a boas sugestões… (risos). Dependendo do objectivo: se for para a música ficar melhor… O Chris Common até disse isso uma vez: existem fórmulas, coisas que às vezes não passam pela cabeça do pessoal. No rock alternativo, na rádio, nos EUA ou em Inglaterra, o single tem que ter três minutos e meio – mais dez segundos, menos dez segundos -, uma espécie de regra, estás a ver. E a nós isso não nos interessa. E ele sabia isso e às tantas disse-nos: “eu não vou estar com este tipo de considerações, vocês estão aqui a fazer a vossa cena. Isto é a vossa obra de arte e eu vou ajudar a pôr no CD o que vocês tocam”.
ALTAMONT:Tu há bocado falaste na reinvenção que fizeram da canção de embalar do Zeca. Acho que resultou muito bem essa mistura quase subversiva de pegar numa canção mais tradicional e fazer uma releitura num registo estético completamente diferente.
ANDRÉ: O Zeca Afonso era subversivo.
ALTAMONT: Exacto. Pelo que é coerente a nível da atitude.
JORGE: Eu acho que o Zeca Afonso poderia se calhar não gostar da nossa versão por causa do estilo mas pelo menos admirar ou respeitar por causa da atitude.
ALTAMONT: Vocês punham samplers da música original de fundo e exploravam à volta.
ANDRÉ: Ele cantava ali connosco.
ALTAMONT: De alguma forma – e voltando outra vez à parvoíce dos rótulos-, entraram ali no registo da fusão. Vocês achariam interessante no futuro continuarem nesse trilho, “a rumar”?
ANDRÉ: Eu se calhar sou quem ouve mais música portuguesa e música mais tradicional.
ALTAMONT: Godinhos, Zé Mários Brancos e coisas assim?
ANDRÉ: Principalmente, Fausto. Gosto muito, muito do Fausto.
JORGE: Também ouço. Coisas diferentes como o Rui Júnior. Não é música tradicional mas vem daí.
ALTAMONT: Como o Zeca. Se calhar um dos primeiros artistas de fusão.
ANDRÉ: Gosto muito dessas coisas. E gosto muito de Carlos Paredes e daquela escola de Coimbra. Tenho uma guitarra portuguesa em casa, gosto de tocar e estou a tentar aprender. Uma coisa que não toco na banda porque porque não toco o suficiente para isso.
ALTAMONT- Não fecham as portas a isso?
ANDRÉ: Não fechamos as portas a nada. Todos nós ouvimos música em todo o lado e somos permeáveis às coisas que ouvimos e se não fossemos portugueses não soaríamos da mesma forma.
ALTAMONT- É engraçado estares a dizer isso porque há certas canções vossas, especialmente aquelas mais calmas, onde há quase qualquer coisa de fado na guitarra, uma certa nostalgia, uma certa saudade, uma certa dolência. Eu senti isso. Faz-vos algum sentido?
ANDRÉ: Há uma melancolia e há outra coisa. Vou dar um exemplo de uma conversa que tive com um amigo meu que é um músico estrangeiro (meio polaco, meio inglês) que vive cá em Portugal. Mesmo as pessoas que não gostam de fado (agora está na moda) são indirectamente influenciadas. Tu ouves alguém a cantar um fado ou a tocar guitarra portuguesa e imediatamente reconheces o que aquilo é. Um estrangeiro que não esteja familiarizado com isso, dirá que é uma cítara ou que parece música grega. Um português nunca confundiria um fado com uma música grega. Ele sabe exactamente o que aquilo é. Então, aquilo está lá e depois quando tocas, a tua cabeça ou os teus dedos puxam para uma nota que pode vir daí.
ALTAMONT: Para acabar: para o futuro quais são as vossas expectativas?
JORGE: A minha ideia é pegar nas improvisações que correram bem e a partir daí construir novas músicas.
PAULO: Vamos continuar a compor, apresentar ao vivo o nosso álbum para o promovermos e possivelmente no início do ano lançar uma ou duas músicas num formato qualquer, talvez até em vinyl.
JORGE: Gostava de um dia fazer um concerto em que chegássemos lá sem sabermos o que iríamos fazer, fazendo uma hora de improvisação.
ALTAMONT: Teriam coragem para isso. Para criar sem rede?
PAULO: É daí que partem as nossas músicas.
ALTAMONT: Mas mesmo assim não se sentiriam inseguros?
ANDRÉ: A segurança tem a ver com uma coisa. Nós agora tocamos em qualquer sítio. Hoje tocámos na rua e já tocámos em coisas muito parecidas com vãos de escadas, do tipo: a sala de estar da avó de alguém. E nesses sítios a coisa até funciona mas estamos a fazer uma coisa que é ensaiada, e eu sei de cor onde é que a guitarra do Paulo está e ouvir só um bocado já é suficiente. Para fazermos um jam, nós temos de estar a ouvir-nos aos três perfeitamente e isso tem que ser num ambiente que esteja mais controlado.
JORGE: É preciso também já termos algum estatuto para o próprio público estar predisposto para nos ouvir nesse contexto.
ALTAMONT: É cativante o conceito: “senhores e senhoras, a banda que cria canções sem rede…”
JORGE: O mais engraçado seria alguém não acreditar que fosse uma improvisação, o que seria o nosso maior elogio: “Não me enganam. Vocês compuseram isto e ensaiaram”.
PAULO: A “Arder” foi tocada na primeira vez que nós nos juntámos e 90% da música que está no álbum foi tocada de uma vez.
ALTAMONT: Obrigado, “O Quarto Fantasma”.