Heart Beats Slow – ou como o desemprego e depressão podem ser a maleita ideal para criar uma obra de arte. Mira, Un Lobo! é uma das grandes descobertas da música nacional neste ano de 2016. Descoberta, sim, porque antes de cá chegar, já fazia furor lá fora. Luís F. de Sousa explica de onde vem um dos discos mais interessantes do ano.
Quero começar pelo princípio. Este é o teu primeiro disco a solo, mas tu já tens um percurso na música.
Basicamente eu estive nos últimos 10 anos ligado a uma banda que editou alguns discos [os MAU], entretanto quando estava a preparar o último trabalho da banda, estava desempregado e então tinha muito tempo livre, forçado, mas de certa forma acabou por ser positivo porque deu-me espaço para poder criar e para poder dedicar-me à música a tempo inteiro, coisa que nunca tinha acontecido. E nos intervalos da preparação desse álbum, iam-me surgindo composições que não se encaixavam na linha dessa banda e então fui guardando esses temas, achei que tinham interesse, que começavam a pedir um projecto separado e foi assim que surgiu Mira, Un Lobo!
Este disco surge também numa altura em que, além de estares desempregado, o país estava em crise. Isso terá inspirado de alguma forma o álbum, os conceitos que abordas?
Sim, isso acabou por se reflectir nas músicas que eu estava a criar durante essa fase, porque é sempre desagradável seres despedido, de certa forma estás a ser rejeitado, começas a pôr em causa muita coisa, o teu talento, a tua capacidade no trabalho, etc. Porque eu não vivia da música – nem vivo hoje em dia – e então é um período em que a depressão inevitavelmente bate à porta, ainda por cima eu tinha responsabilidades familiares, tinha um filho pequeno na altura, tinha contas para pagar, e a música acabou por servir como uma espécie de equilíbrio emocional, mas que não me deixou completamente inerte, não me deixou escondido debaixo dos lençóis à espera que os problemas passassem. Eu estava a fazer alguma coisa e é porreiro ver agora que essas coisas que eu fiz enquanto estava desocupado transformaram-se em algo físico, que é um disco e que nesta altura está a ser comercializado no mundo inteiro.
Mas ainda assim, o disco não é depressivo.
Eu não o vejo dessa forma, eu acho que espelha um processo que é algo depressivo e como na maioria das depressões há uma certa bipolaridade no teu estado de espírito, que oscila entre esses momentos mais mortiços, mais tristes, e depois picos de excitação e de entusiasmo e de catarse, quase. Acho que sentes isso, tanto no disco inteiro, como por vezes dentro de certas músicas, onde há assim uma acalmia que explode numa coisa quase épica. Portanto sim, acaba por espelhar isso mas não acho que seja um disco negativo ou que puxe para baixo, pelo contrário, acho que tenta mostrar o caminho para sair desse buraco. Pelo menos para mim foi isso que o disco fez sentir e de certa forma me ajudou a sair desse buraco. Mas eu acho que também encontras [a depressão] no disco, isso sente-se em pequenos momentos, pequenas frases, pá, obviamente eu não estava num sítio bom na altura mas usava a música para sair desse sítio. Daí sentir-se essa transição do negativo para o positivo e, de certa forma, celebrar a tristeza, porque a tristeza também é um sentimento bonito, tem muito de belo, normalmente é nos momentos de maior tristeza que tu valorizas aquilo que é mais importante, é quando dás mais valor às coisas, e foi isso que eu tentei evidenciar neste disco.
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Pode então dizer-se que a música te salvou?
Sim. A música salvou a minha vida. Claro, não numa forma tão drástica, mas sem dúvida que me ajudou a manter o equilíbrio emocional durante esse período, foi o meu psicólogo durante aquela altura.
Quando decidiste avançar para um projecto a solo, tiveste de arranjar um nome. De onde vem Mira, Un Lobo?
Eu não tenho uma justificação muito arrojada para explicar o nome. Simplesmente apareceu-me, como me aparecem muitas vezes letras ou melodias, apareceu-me o nome, achei interessante, achei que não te de haver regras – eu sou português, canto em inglês, por que é que não posso ter um nome em espanhol? Eu acho que a voz e a língua é só mais um pedal de efeitos, é só mais um instrumento. Então achei que fazia sentido e depois gosto do simbolismo, de apontares o dedo aos teus medos, quando o lobo na realidade tem mais medo de ti que tu dele, tu é que crias esses medos na tua cabeça portanto é bom que os resolvas, o lobo não tem culpa nenhuma. Pronto, achei que tinha graça, nós normalmente apontarmos o dedo àquilo que nos assusta. E com esta trama toda dos refugiados, por exemplo, isso tem sido muito evidente, tudo aquilo que nós desconhecemos normalmente temos receio e procuramos afastar-nos, o que é errado, o medo por norma está directamente ligado à ignorância e a só há uma forma de a resolver, é tendo conhecimento, tendo informação e isso tem de partir de nós, não pode partir do lobo.
Toda a música, composição e arranjos, foi tudo feito por ti, sozinho?
Sim, basicamente fiz do quarto e da sala o meu estúdio, porque hoje em dia com um laptop facilmente consegues ter acesso a quase todo o tipo de sons. Então foi assim, um teclado midi ligado a um computador, um microfone decente e basicamente foi passar para ali tudo aquilo que eu estava a sentir e que me estava a aparecer. Depois, numa fase posterior quando o disco estava praticamente misturado, finalizado, desta forma caseira, tive a participação do Carlos Costa nas guitarras, em dois temas, e da Eliana Fernandes nas segundas vozes de outro tema, e do meu filho enquanto bebé no tema que dá nome ao disco. Fora isso, foi só a parte de limar umas arestas, aprimorar a mistura, e a fase final de masterização e pós-produção foi feita com um grande amigo meu que é o Ricardo Fialho, que tem um estúdio, Inversus Studios, e foi lá que nós finalizámos o disco.
Tirando essa parte final, foi tudo muito caseiro. Mas não se nota.
Lá está, hoje só precisas de pesquisar, se calhar o maior trabalho é de pesquisa de ferramentas com as quais tu podes trabalhar e que te podem dar uma sonoridade profissional, é muito fácil, há muitos plug-ins, há muitas coisas boas e não são muito caras, facilmente consegues ter as coisas de forma legal, mas hoje em dia, com um computador e em casa, já consegues fazer muita coisa e já consegues ter uma sonoridade que não parece caseira.
O disco tem edição internacional – pela alemã Tapete Records – e está a ter boas críticas em meios de comunicação estrangeiros. Como é que lá chegaste?
Mais uma vez, eu tinha tempo, e então acabei por fazer o trabalho de promoção, não tendo dinheiro para pagar a uma promotora para me ajudar nessa matéria, até porque as promotoras estão normalmente associadas ao país onde estás e fica muito caro teres uma promotora que trate da parte internacional. Então como eu tinha tempo, foi ser carpinteiro, foi construir isso desde a raiz, fazer muita pesquisa, eu já tinha muitos blogs que seguia, então fui ao Hype Machine ver quais os blogs que à partida postavam músicas dentro daquilo que eu estava a fazer, tirei esses contactos todos, fui chato, mandei e-mails, sempre duma forma muito personalizada – até fica aqui a dica para quem está na mesma situação que eu – o processo é esse, tentar contactá-los, vou mandar para 150 blogs e só 5 me vão responder, mas esses 5 às vezes são importantes e fazem a diferença. E foi o mesmo com as editoras, já tendo algumas críticas em carteira, abordar algumas editoras que se enquadravam com o tipo de som que eu fazia e esperar pelo melhor. E tive a sorte de ter resposta de várias, da Dinamarca, da Bélgica, de uma francesa e desta editora alemã, Tapete Records, que apesar de indie é uma editora grande, tem um grande catálogo com nomes interessantes, e que me pareceu ter uma estrutura sólida para conseguir levar o meu disco ao mundo inteiro, não só a nível de edição mas também de promoção. E a experiência tem sido incrível, porque eu com a minha banda a anterior já tinha tido contacto com algumas majors e não se compara o tratamento, não se compara o empenho, não se compara a dedicação.
Toda essa atenção será mais um impulso para Mira, Un Lobo! continuar, não tencionas ficar só por este disco?
Eu acho que dificilmente vou parar de fazer música, independentemente da minha vida profissional e familiar. Inevitavelmente vou sempre precisar da música, é o meu equilíbrio, preciso disso. Portanto, à partida, Mira Un Lobo continuará, eu quando fiz este álbum não foi com nenhum propósito, nenhum objectivo em concreto, achei que tinha bons temas que mereciam ser ouvidos por outras pessoas que não só eu e os meus amigos, e é isso que estou a fazer. Também era suposto não tocar ao vivo, queria que fosse só uma coisa de estúdio e neste momento, como estão a chegar alguns convites – inclusivamente lá de fora, o nosso primeiro concerto marcado é em Bilbao, num festival de música electrónica e o convite entusiasmou-nos. Eu já estou a falar de ‘nós’ porque já falei com banda, já temos uma banda alinhavada, e então vamos começar com ensaios e preparar um espectáculo ao vivo. Ou seja, tudo se vai alterando em função da reacção das pessoas, se houve vontade em ouvir nós temos todo o interesse em tocar.
Portanto vais alargar a coisa, mesmo tendo sido só tu a fazer a música, não queres tocar sozinho.
Isso eu jamais faria, eu não gosto assim tanto do palco para estar sozinho em cima dum palco a olhar para pessoas, não dá para mim, eu preciso desse apoio. E depois há aqui outra questão, a parte que me entusiasma mais na música é mesmo a parte de composição, criação, feitura dos temas, mistura, aprimorá-los, isso é o que eu gosto realmente na música. A parte dos concertos vem muito depois, eu tenho prazer em tocar ao vivo mas não é a minha cena, portanto para mim estava bom fazer o disco, mostrá-lo e pronto, ficava satisfeito e agora ia começar a compor outras coisas. Mas agora sinto que há vontade por parte das pessoas em ouvir e isso gera vontade em mim de querer tocar os temas ao vivo.