
Se dúvidas houvesse, ao terceiro álbum Márcia dissipa-as e estabelece-se categoricamente como uma trovadora de excepção, a mais elegante e eloquente da sua geração. A cantautora lisboeta edita esta segunda-feira o novo disco (que apresenta ao vivo esta tarde, 18h30, na Fnac do Chiado, numa actuação altamente recomendada). Antes de pôr o disco cá fora, Márcia sentou-se para dois dedos de conversa com o Altamont, a quem escancarou as portas do seu Quarto Crescente.
A primeira coisa que salta à vista, neste álbum, é uma paz, uma tranquilidade que emana da tua música, do teu cantar. Isso quer dizer também que estás mais confiante, na tua composição?
É óptimo ouvir isso, obrigada. É capaz de significar que me apaziguei, com algumas coisas. Não significa haver passividade da minha parte em relação às coisas que me perturbam – que pode ser uma coisa leviana como um episódio quotidiano ou esta situação do país, esta carga enorme – isto continua tudo a preocupar-me, mas acho é que consigo apaziguar-me e defender o meu espaço íntimo, que no fundo é um alicerce de segurança, na minha vida.
E além dessa paz que se sente, ouve-se que abrandaste as batidas por minuto, as canções têm um ritmo mais vagaroso. De onde vem isso?
Não sei, é capaz de acontecer diferente neste disco, e isso certamente, é que eu própria toquei as batidas, mesmo nas maquetes. O que acontecia dantes era que eu fazia uma canção com a guitarra, o Filipe [C. Monteiro] – meu marido, que produziu o Casulo – ou no caso do Dá, que foi o Walter Benjamin que produziu – eles pegaram nas músicas e produziram, fizeram os arranjos, fizeram a batida à volta daquilo. Nestas canções isso não aconteceu, pelo menos meio disco, aqui há 6 canções em que eu construí a música a partir de uma batida. A batida, ou a linha de baixo, foi a primeira coisa que eu fiz, ou então fiz um acorde em teclado e depois fui pondo o ritmo que eu queria, mas fui eu própria que fui fazer essas batidas. Talvez daí tenhas sentido esse tempo, mas o tempo para mim é muito marcado e, aliás, na mistura do disco – em que eu participo muito – aquilo a que eu tive mais atenção em manter era o som da bateria e a batida da tarola, estou-me a lembrar do “Havia”, estivemos muito tempo à volta daquela batida porque eu não estava satisfeita ainda com o pesar da tarola, para mim tinha de ser um ritmo que pesasse aquela marcação. E no caso da “Linha de Ferro”, em que eu fui aconselhada a tirar alguns graves, aquele beat nós mantivemos o original, primeiro fizemos uma bateria em cima e eu não gostei daquilo, prefiro uma coisa mesmo assumidamente digital e com este “gravalhão”, eles diziam que ficava um bocado descompensado, desproporcional, mas eu quis assumir esse peso do grave.
Os ritmos estão muito marcados e as músicas vão mais devagar – não tão aceleradas como outras dos discos anteriores – mas não é por isso que são paradas.
Pois. Talvez “A Insatisfação”, nós quando a fizemos tivemos ocasião de tocar em Dezembro, num auditório, ao vivo, e então resolvemos tocá-la pela primeira vez. Como eu tinha aquela sensação que a música é a puxar para a frente, e dava para dançar, resolvemos subir um tom à música e aumentar o bpm – era 106 e subimos para 110 – e depois mantivemos a música assim e quando veio o Dadi [Carvalho, produtor], eu tive o trabalho todo de ouvir as músicas com ele a ver o que é que ele achava bem, eu estava ainda indefinida numas quatro ou cinco canções, sobre o tom, e a “Insatisfação” foi a primeira que eu lhe disse “ouve aqui, esta música está mais rápida, o tom é mais alto, mas eu sinto que ela swinga ainda menos, tem menos groove“, e ele concordou comigo e voltámos para o tom inicial, achámos que a música podia groovar com aquele baixo e com… não tomei muita atenção, de facto, se era parado, a mim interessava-me que aquilo ficasse no ritmo das palavras, e que acentuasse aquilo que eu sentia que era de acentuar.
Falaste aí do ritmo das palavras, as primeiras palavras da primeira música são “escrita fina” – que é precisamente o que é a tua – uma fina e encantadora escrita.
Há uma certa delicadeza na minha maneira de escrever, quando eu escrevo sinto um bocado… se calhar é isso que eu digo com a “escrita fina”, eu deixo a escrita correr e noto que há uma certa delicadeza… eu não sou só isso, assim como não sou só melancólica, não sou só de voz fina, às vezes também me chateio e me irrito – na “Urgência” também tens essa parte, há uma parte da letra que diz “a minha voz que apesar de grossa me sai sempre fina”, às vezes há um bocado essa contradição em mim, que eu acabo por escrever delicadamente, e às vezes sou um bocado bruta noutras ocasiões [risos].
Espero então que as letras venham no livrete do disco.
Vêm, vêm, eu faço questão de as letras estarem no disco, se não para mim era uma facada, porque eu dou tanto valor às letras, é o que eu mais trabalho – aliás as letras surpreendem-me porque eu acho que estou a escrever uma letra pequenina e daí a bocado tenho uma canção quase com 7 minutos, e é tudo porque eu continuo a querer escrever, dá-me imenso prazer, para mim é uma parte divertida e ao mesmo tempo tenho o prazer da catarse de estar a escrever coisas que quero dizer e nem sei, e então para mim, pôr as letras no booklet é mais do que obrigatório. Porque eu também acho que as músicas que até hoje me salvaram, algures na vida, são músicas que eu fui comprar o disco porque eu queria ver as letras lá, queria tanto perceber o que é que ela dizia, se é mesmo o que eu acho que ela diz. E pronto, quem quiser, assim tem acesso a esse livrinho, está um livro feito com algumas fotografias no meio, este booklet é diferente dos anteriores, os outros eram sempre o poster, este é mesmo um livrinho, porque eu acho que as letras desta vez estão muito completas, muito cheias, muito grandes.

Achas que a tua escrita está mais apurada?
Acho que a minha escrita está um bocado mais directa. Não sei se será apurada, quer dizer, deve estar apurada, há um certo crescimento, um amadurecimento, mas o que que eu senti desta vez foi que eu dizia algumas coisas de forma mais escancarada, à medida que escrevia não quis cortar isso, não quis parar isso, não quis censurar, e isso faz parte dos meus requisitos para comigo própria – tentar não me censurar, tentar não me impedir de fazer o que eu tenho de fazer. Às vezes é difícil, porque achas que estás a entrar num território foleiro, ou demasiado pop, ou demasiado indie, ou demasiado qualquer coisa, e estás com medo de estar a ir para um território demasiado qualquer coisa – e eu tenho muitas vezes de vencer esse medo, “não, não tenhas medo, diz o que tens a dizer, depois há de haver alguém que te há de ajudar a ver, deixa ‘tar, faz o que tens a fazer”, e foi isso que eu fiz.
E de que fala este disco?
Tens vários momentos no disco. Na verdade até podes fazer uma analogia com as fases da Lua. Porque há luas novas, há luas cheias, e de facto há ali umas canções que eu fui buscar ao passado, por exemplo o “Havia” é uma canção que fala de deixar, é uma música que é muito forte para mim, às vezes a ouvi-la fico trespassada, toca-me forte, e não sei porque é que eu fui escrever aquilo agora. Se calhar hoje tenho mais espaço pessoal onde me sinto segura e posso ir pisar alguns terrenos onde eu já estive e que me assustavam, e não estou a falar só formalmente de estar a escrever sobre isso, mas também… eu sempre escrevi muito autobiograficamente, e tens neste disco duas músicas que são do passado, o “Havia” e o “Lado Oposto”, as duas falam de um sítio que eu conheci, não é um sítio físico, mas é um lugar onde nós podemos ir, é onde eu não quero voltar, eu acho que só quando tu sabes que não vais lá voltar é que, de facto, arriscas a falar dele. Por isso é que eu acho que estas músicas saíram agora.
Falaste aí nas fases da Lua, o disco chama-se Quarto Crescente (apesar de sair em noite de Lua Nova, mas a partir daí entra em quarto crescente). É por isso um disco de esperança?
Sim, é um disco de esperança e as músicas falam muito nisso, na verdade as músicas falam muito de mudança para um sítio melhor, para um lugar melhor, para uma situação melhor, coisas que tens de deixar para conseguires andar em frente. Eu assumi um bocado a solidão da cidade, a solidão urbana, eu sentia isso na frieza dos teclados, é uma questão de sonoridade, porque é uma solidão, lá está, que já não me assusta, se calhar porque cheguei a outro sítio onde sinto alguma segurança. Há a música “Linha de Ferro” que diz “os meus olhos no infinito”, há aquele reconhecer de estares num mau lugar, numa má situação como um momento fulcral para a mudança e para a saída, porque se não reconheces… esse é o primeiro passo para mudares de vida, reconheceres que alguma coisa está mal e muitas vezes nós temos medo de assumir isso. E todas as canções do disco de alguma forma falam nisso, de ir procurar alguma coisa melhor, tu tens tanto a fazer ainda, tens de continuar a acreditar, não tens outra saída, isto é o teu destino, tens de continuar a fazer, e lutar sempre para estar melhor.
Este é o teu primeiro disco em que a capa não é uma ilustração, mas uma fotografia tua. É uma forma de afirmação de identidade, quase como quando um artista dá ao disco um título homónimo?
Não sei se será isso, pode ser também, mas acho que está mais relacionado com esta questão que eu senti ao longo das canções, desta realidade escancarada que eu estava a falar, a realidade interior escancarada, a visão dessa fotografia é uma visão interna, de dentro para fora, é uma janela, em que tu estás de facto a confrontar o exterior, não estás fechado como no Casulo. Tens de fechar de vez em quando a janela, mas há um confronto com o exterior, eu acho que é essa imagem de confronto, há o confrontar de uma realidade e para mim foi óbvio que tinha de ser uma fotografia. E aí pensei no David [Fonseca], que conheço o trabalho dele de fotografia e sempre quis que ele fizesse uma exposição de fotografia, e então telefonei-lhe a perguntar se ele não se importava de fazer isto e ele aceitou logo, e foi óptimo fotografar com ele. E saíu exactamente o que eu pretendia, saíu melhor do que eu pretendia, na verdade, surpreendeu-me.
Sobre o produtor, a cada disco teu tens um produtor diferente. E escolheste agora o Dadi Carvalho para dar um certo ar mais tropical ao disco?
Não sei se é tropical mas havia certas coisas na sonoridade que eu conhecia do Dadi – ou melhor, não do Dadi especificamente porque o trabalho de um produtor humilde como ele é, e de coração enorme, nunca é um trabalho que se impõe. Ele está intimamente ligado a montes de projectos com os quais eu sentia uma certa afinidade – Marisa Monte, o Caetano, o Jorge Ben – tudo isso mostra uma versatilidade dele e uma carga humana tão grande, que foi por aí que eu o escolhi. E mesmo com os Tribalistas, ele não é a primeira cara que tu lembras dos Tribalistas, mas ele tem lá muita mão naquela produção, e era exactamente esse tipo de produtor que eu precisava. Estavas a dizer que eu mudo de produtor de disco para disco, eu reservo-me o direito de preservar a minha identidade e há produtores que têm outra maneira de trabalhar, têm aquela maneira de pôr a sonoridade deles no disco. Eu sou co-produtora do disco, deste e do Casulo, e acho que já sei muito bem a sonoridade que quero manter e não deixo que isso seja posto em causa. E o Dadi defendeu isso muito bem, ele aprimorou todas as minhas propostas, havia algumas músicas que ele disse logo “nestas nós nem sequer vamos mexer, só vamos aprimorar, só vamos juntar uns teclados ou um baixo, este é exactamente o ambiente que tem de estar”. E meio disco é isso.
https://www.youtube.com/watch?v=m48m0IxN2Hk&feature=youtu.be