Foi nesta carrinha que Luís Nunes levou Benjamim a passear pelo país. O Walter e as suas canções inglesas ficaram em Londres, na nova encarnação há Benjamim, uma série de belíssimas cantigas e uma Volta a Portugal em Auto Rádio. Antes de editar o primeiro álbum da nova era, Benjamim andou de norte a sul do país a tocar todas as noites, durante 33 dias seguidos. Acompanhado por Nuno Lucas e António Vasconcelos Dias, Luís Nunes testou em inúmeros cenários as novas canções, e o resultado foi captado por Gonçalo Pôla num diário de bordo. No dia 26 de Setembro há concerto na Zé dos Bois, na primeira apresentação oficial do novo disco. Pelo meio, ficámos a saber como correu a Volta, como nasceu este disco e quão difícil foi a transformação do músico.
Estiveste em digressão pelo país com 33 concertos seguidos. Não te fartaste das músicas?
Não (risos). Porque nós como tocámos para sempre pessoas diferentes.. se eu estivesse a ensaiar 33 vezes de seguida acho que me tinha fartado completamente das canções, mas como tocámos sempre em contextos completamente diferentes, acho que nem deu para nos fartarmos, porque nós tínhamos sempre que adaptar às pessoas que tínhamos à frente, portanto acaba por nunca ser a mesma coisa. Eu pensava que íamos ficar muito mais fartos do que ficámos, na verdade.
E como correu esta volta a Portugal? Passaste a olhar de outra forma para as canções?
Mais ou menos. Eu não passei a olhar para elas de maneira diferente, mas aprendi a cantá-las, acho eu. Elas mudaram, nesse sentido, um dos grandes objectivos desta tour era aprender a cantar as canções, porque eu nunca tinha cantado em português e estava em pânico, portanto serviu para isso também, e acho que as canções mudaram com isso. Elas são as mesmas canções mas a maneira como eu consigo interpretar as canções mudou.
Sentiste feedback das pessoas com as novas canções, com a tua nova “identidade”?
Senti, senti um feedback surpreendente até. Houve sítios onde nós tivemos grandes surpresas, em termos de público, às vezes não era uma questão de quantidade, é uma questão da recepção do público às músicas, houve concertos que demos em sítios de que eu nunca tinha ouvido falar, por exemplo Afife, há lá uma praia e tem uma esplanada, e aquilo encheu-se de gente e de repente havia grupos de estrangeiros a comprar discos. Tivemos surpresas destas – principalmente os estrangeiros, porque não percebem as letras – mas também pessoas mais velhas, em sítios mais isolados, que acho que gostaram mesmo, vieram falar connosco e estavam entusiásticas na recepção. Acho que foi bom.
Qual é o balanço final que fazes desta tour, sentes que cresceste enquanto músico?
Sinto que tudo cresceu. Eu enquanto músico, a banda – se bem que era uma versão muito reduzida – também cresceu, cresceu uma relação com algum público, viajámos as canções, que foram postas à prova em vários sítios, elas passearam por Portugal e esse era um dos grandes objectivos, e eu aprendi a cantá-las mais ou menos. Portanto acho que foi tudo muito positivo.
A carrinha Volkswagen de ’96 aguentou-se?
Aguentou-se, está com a embraiagem um bocado estragada, vou ter de mandar arranjar, e faz uns barulhos assustadores, quando se vira o volante todo para a direita. Mas aguentou-se muita bem. Foram 5670 kilómetros.
E durante este passeio, ouviste muito auto-rádio?
Ouvi bastante auto-rádio, por acaso ouvimos. Tanto fazíamos playlist no nosso iPod como andávamos a explorar as rádios, nós gostamos de fazer zapping.
Quanto à tua mudança de Walter Benjamin para Benjamim, acredito que esta tour tenha ajudado a consolidar o teu lado agora mais lusitano, mas essa transformação foi difícil de fazer?
Foi um processo bastante difícil, foi a coisa mais difícil que eu já fiz na vida, mesmo! Não foi difícil deixar de ser Walter Benjamin e passar a ser Benjamim, isso não foi a parte difícil. O difícil foi ter alguma coisa para apresentar enquanto Benjamim, ou seja, escrever as canções, fazer com que elas me convencessem minimamente. Porque tu tás habituado a fazer uma coisa, com pessoas que tocam contigo ou que são teus amigos ou que te conhecem através do teu trabalho e já estão habituadas àquilo que tu fazes. E de repente fazes uma coisa diferente e as opiniões começam-se a dividir muito, e começas a ouvir todas as opiniões e às tantas tu tens de pensar “não, vou esquecer tudo o que toda a gente diz e vou fazer o que eu acho que deve ser feito”. A primeira crítica ao disco saiu há uns dias e eu estava nervoso, porque era a primeira vez que eu ia receber uma crítica de um disco que eu não faço ideia se resulta ou não resulta, faltava aquela opinião de pessoa que não me conhece e que vai ouvir o disco em branco. E acho que esse processo todo da mudança, eu poder acreditar nas canções, eu poder escrever coisas que eu não achasse que eram horrorosas – mas depois tu às vezes escreves uma coisa que pensas que não é horrorosa mas passado 3 dias “que horror, isto é mesmo horrível” – e esse filtro, que demora algum tempo a actuar, todo esse processo foi mesmo complicado. Depois o aprender a cantar, porque tu quando cantas em inglês – ou em qualquer língua, se fores um cantor de ópera e cantas muito em italiano ou em alemão – vais aprender a cantar para aquela língua, para aqueles sons, para aquelas palavras. Em inglês também já sabes os truquezinhos das palavras. Em português eu não sabia, não conhecia os truques das palavras, nunca tinha cantado uma canção inteira em português à frente de alguém.
E diz-se que o português é mais difícil de musicar.
E as referências. A falta de referências é imensa. Tu na América tens um número infinito de referências, em Portugal tens algumas boas obviamente, mas não muitas. E corres sempre o risco de te colares a alguma coisa, porque quanto menos referências tens, maiores elas são, e mais fácil é tu colares-te àquilo. Cantar em português, para mim, foi muito difícil. Porque é uma questão do hábito e da mudança, e houve um lado de auto-imposição. Depois há outro lado que também é muito importante, quando eu cantava em inglês eu podia dizer o que eu quisesse, era uma personagem, tu consegues automaticamente distanciar-te daquilo que tu és, parece que tás a viver noutro universo paralelo. Se tu escreves em português não, tu és o mesmo gajo que vai ali ao café e falas com a pessoa do café sobre a bola. E portanto isso já cabe na canção, porque é quem tu realmente és, e acho que o primeiro choque é quando vais ao microfone e cantas a canção e ouves-te e és mesmo tu, é como se fosse aqueles vídeos de quando és puto e te vês a falar e só queres chorar porque a tua voz não é assim, mas é. Demora muito tempo a habituares-te à tua própria voz, à tua voz real.
Não só em termos vocais mas também no que escreves, sentes-te mais exposto?
Sim, muito mais, muito mais exposto. Eu falo do Sporting numa canção, estou a expor uma coisa que é absolutamente terrena, é uma coisa que se fosse em inglês não caberia numa canção, pelo menos para mim. Ou seja, eu exploro um universo que é muito mais pessoal e mais terra a terra, porque tou a falar das coisas que eu vivo normalmente, que me rodeiam no dia a dia e são absolutamente reais. Portanto, se aprofundares as canções, se não escreveres só uma coisa inócua – vais estar mais exposto porque é a tua língua.
Portanto além da mudança de idioma, também mudaste o paradigma, menos personagem e mais tu próprio?
Sim. Eu tento sempre fazer uma personagem, eu assino como Benjamim, há um lado que eu tento despersonalizar. E no disco, há canções que são muito autobiográficas e há outras que não, são histórias de outras pessoas ou coisas que eu invento, mas tem esse lado.
Quanto ao Auto Rádio, quando é que decidiste fazer este tipo de disco, dedicado a este tema? Decidiste primeiro fazer um álbum à volta de um conceito e depois fizeste as canções, ou foste fazendo as canções e depois ganhou esta forma?
Eu tinha um conceito inicial, quando eu quis começar a escrever canções em português comprei um caderno e chamei-lhe «Canções Para Carros». Então era o meu disco imaginário em que eu fazia canções sobre carros, porque não queria estar a escrever coisas como “eu gosto de ti” numa canção, não queria estar a fazer uma coisa super pessoal e estar a usar todas as coisas que eu considerava foleiras em muitas canções. Porque eu cresci numa geração que tinha muito preconceito em relação à música em português. Então começou com esse lado de falar sobre carros em que eu podia dizer o que me apetecesse e não era uma coisa absolutamente pessoal. Depois começaram a surgir canções, obviamente que se foram distanciando rapidamente dessa ideia inicial, que era só um mero exercício, e depois comecei a ter muitas canções que estavam desconjuntadas umas com as outras, o outro disco de Walter Benjamim aquilo passa sempre pelo mesmo registo de canção, e neste aqui não, eu queria explorar o máximo possível. E acho que, ao ser tão desorganizado e tão incoerente, para mim aquilo foi quase como uma emissão de rádio, que passa por várias bandas e sons diferentes e os andamentos vão mudando. Eu moro no Alentejo e muito do disco foi feito, foi pensado no carro, eu ouvia muito no carro as canções e tirava ideia durante as viagens, e portanto achei interessante poder contar várias histórias durante uma viagem. E surgiu assim o nome Auto Rádio. O conceito surge naturalmente e não foi uma imposição para a escrita das canções.
Depois de alguns anos em Londres, este disco também é um pouco sobre regressar a casa?
Sim, de certa forma. De regresso a casa e de chegada a casa, em termos da língua, sinto que é o primeiro disco que estou a fazer, de certa forma. Porque é uma coisa nova que se abriu à minha frente e agora só quero fazer discos em português, não quero fazer discos em inglês. Sinto que é o início efectivo.. tudo o que fiz até agora era quase como uma experiência para o que estou a fazer neste momento, é uma sensação um bocado estranha. Aliás, este disco Auto Rádio é uma experiência, todas as canções são uma experiência, eu quis saber o que é que eu conseguiria fazer, tanto a nível da escrita das canções como também a nível sónico. O disco tem muitas músicas com imensas camadas e bastante tempo a experimentar coisas no estúdio, portanto não é só a questão da língua, é também de esticar ao máximo a corda daquilo que eu poderia fazer nesta fase.
Sim, o disco tem um espectro bastante alargado de sonoridades. Mas se calhar num próximo disco vais mais atrás de um género, que tenhas começado neste álbum?
Poderá ser. Ainda há muitas coisas que eu quero fazer e experimentar, não quero fechar-me muito num registo só, não quero ser um cantautor.
Ao vivo, vais ter um concerto na ZDB, dia 26, que vai ser a apresentação oficial. Vai ser com o mesmo formato que usaste na volta a Portugal?
Basicamente vai ser baixo, bateria, muitas teclas, guitarras e vozes. Vamos ter, em princípio, a Selma Uamusse e vamos ter o AP Braga que vai fazer a primeira parte do concerto e vai cantar connosco, tal como canta no disco. E vai ser uma festa, estamos a preparar uma coisa mais exótica. Nós nunca tocámos com banda completa nesses concertos e na ZDB vai ter uma dinâmica completamente diferente.
E as canções vão agora muito diferentes do que foram gravadas?
Vão ser versões. Eu não gosto de tocar, e não existe um orçamento, para poder tocar as canções como estão no disco, porque eu sou um bocado exaustivo no trabalho de estúdio e depois é complicado montar a coisa como existe em disco. Mas também não tenho esse interesse de reproduzir o que está no disco exactamente, tenho interesse em fazer uma versão boa daquela canção para aquele determinado momento.