Era um dos discos que eu mais aguardava para este ano, mas isso é sempre verdade quando começam a correr as notícias de um novo álbum de Bill Callahan (BC para os amigos e para me poupar trabalho). Desde Sometimes I Wish We Were an Eagle, de 2009, que o feitiço me foi lançado, e sou completamente incapaz de resolver este puzzle chamado Callahan, ou de lhe resistir.
Comecei à procura de BC à pala de um blog que frequentei em tempos, feito por um tipo do norte que se intitulava “O Cigano Mágico”. Não sei nada dele, nunca soube, mas devo-lhe bastante. De vez em quando, nos seus post, falava de BC e dos Silver Jews, coisas que eu não conhecia. Tendo em atenção que o tipo escrevia que era uma maravilha, com balls a sério, atribui credibilidade ao que dizia sobre estes discos, e parti à descoberta. Por isso, Cigano, se me estás a ler, comunica. Devo-te umas cervejas valentes.
Prosseguindo para o Mr. Callahan e este Dream River.
Sendo editado pela sempre independente e sempre recomendável Drag City Records, tive alguma dificuldade em encontrar o disco. Tal era a minha fome de o ter nas mãos que, sabendo que o ia comprar, tentei sacá-lo da net para o ouvir mais cedo, mas sem sucesso. Até que fiz o mais sensato, encomendei-o na Flur, até porque os tipos de lá são, como eu, grandes fãs deste rapaz. Por pouco mais de 15 euros trouxe para casa o vinil (há lá mais e tb em CD, por isso corram). Conto isto porque, neste caso, acho que o formato é importante, tendo em atenção a música.
Dream River segue as pistas dadas pelo igualmente muito bom Apocalypse, o disco anterior (até a capa é parecida). Os músicos são os mesmos, mas este Dream River vai mais fundo no caminho iniciado. Se Sometimes I wish We Were an Eagle tinha toda a solidão e beleza de BC num formato clássico de canção (e é um dos discos mais absolutamente perfeitos que alguma vez ouvi), as últimas investidas de BC são mais esparsas, menos estruturadas, mais livres. Neste Dream River, por baixo de uma aparência de canções, o que há é uma constante deambulação por diversos caminhos, em cada música. Como se os instrumentistas fossem inventando uma estrada, passo a passo, sem plano, e Callahan fosse improvisando as letras e a melodia vocal por cima. Isso dá ao disco uma fluidez impressionante, já que uma qualquer música começa num sítio, serenamente vai mudando e desemboca, fresco, noutro lugar, diferente mas estranhamente coerente com o que vinha antes. Isto é um bocado difícil de explicar, e provavelmente está a soar como algo de avant garde ou de experimental, mas asseguro-vos que não se trata de nada disso. É um disco exigente, mas exigente apenas porque pede tempo. Não para percebermos o que tem de especial, à primeira audição é fácil percebermos que estamos perante algo de muito bom e de muito belo. Mas a quase ausência dessa coisa retrógrada chamada “refrão”, por exemplo, não significa música inacessível. Não significa sequer que não estejamos perante canções, porque elas estão lá e são óptimas. Significa apenas que Callahan está a fazer o mesmo – grandes discos e grandes canções – mas seguindo um caminho formal diferente.
É um disco com espaço, no sentido em que não está cheio de tralha. É baixo suave, percussão original (só uma pequena parte é bateria pura), guitarra acústica, flauta, umas cordas comedidas. Ah, e uma guitarra eléctrica belíssima e suja, a soar a Marc Ribot , a pontuar a voz e as letras cada vez mais certeiras do seu autor.
É, igualmente, um disco que pede para ser ouvido em vinil, porque pede essa paciência. Ler as letras, em grande, enquanto o prato roda. Sentir como BC pesa cada palavra, por cima da cama musical dos seus óptimos e discretos colaboradores, como se respondesse na hora às voltas e deambulações da música. Um disco que, tal como Apocalypse ou Sometimes… está cheio de natureza, mas na óptica de um homem que contempla a Terra e o Tempo, que larga a sua palavra e a sua arte para ficar escrita na pedra, sem perder tempo ou energia com as parvoíces mundanas que nos enchem o dia a dia.
Um som esparso, lindíssimo, que contempla as montanhas, os rios, o céu, e o homem que as contempla. Uma banda sonora de um hipotético western, mas menos John Wayne e mais Cormac Mccarthy. Um disco menos soturno que outros do mesmo autor, mas com a mesma “gravitas”, de quem sabe o que está a fazer e o que quer dizer.
Está, de caras, bem lá para cima nos meus “melhores do ano”. Só não é perfeito porque, há quatro anos, BC fez um monumento chamado Sometimes I Wish We Were an Eagle, e ainda não sei se este o irá superar. Mas Dream River pede tempo, e cresce, cresce, cresce desmesuradamente a cada calma e reflectida audição. Demos-lhe tempo, e talvez lá chegue, a esse topo absoluto.
Tenho a noção que não vos expliquei porra nenhuma, e por isso peço desculpa. Só vos posso recomendar que ouçam, com tempo e amor, a este disco de uma beleza aterradora, que a cada segundo nos coloca lá, na linha da frente, a questionar quem somos e o que fazemos neste mundo. E isso é Arte, do mais elevado nível que a música “pop” alguma vez tentou.