O espectáculo d’A Garota Não no Festival Política o que foi? Um concerto? Uma confissão? Um comício? Não sabemos bem dizer. Mas que foi especial é inegável. Os olhos marejados não enganam…
O hype à volta d’A Garota Não, merecidíssimo, continua: os bilhetes esgotaram enquanto o diabo calçava os sapatos, a sala 2 do São Jorge apinhada com um público muito específico, maioritariamente feminino e “esquerdalha”, à imagem e semelhança da sua nova heroína – a miúda que prefere dizer não. O espectáculo foi diferente do costume, não apenas um concerto, mas também uma partilha de memórias e um quase comício, onde canções bonitas, recordações ternas e direitos humanos vilipendiados se entrelaçaram no mesmo tear.
Primeiro, a garota de Setúbal contava um episódio da sua vida, com a compaixão pelos desvalidos e o humor auto-irónico que a caracterizam; depois, cantava à viola um tema relacionado, com o seu compincha Sérgio Miendes a dar uma segunda e elegante demão na guitarra eléctrica; por fim, pedia a alguém do público para ler o direito humano açambarcado nessa história, normalmente um artigo da constituição (mas também havia articulados inventados, do género: “todos deviam ter tempo para não fazer nada” ou “todos os maus namoros deviam resultar em boas canções” – a Garota a legisladora, já!).
A Garota falou aos já convertidos – ninguém na sala tem um poster do Milton Friedman no quarto -, o anti-situacionismo era quase um requisito para entrar na sala. Mas se a Garota não converteu ninguém, fez algo mais importante: deu um rosto humano a ideologias abstractas, coloriu slogans políticos gastos com as cores vivas das suas lembranças, tornou comovente o que costuma ser árido, e engraçado o que costuma ser sisudo. O autor destas linhas é demasiado cínico para exteriorizar as suas emoções mas, à sua volta, eram muitos os que não conseguiram conter as lágrimas. É que é aí que está o busílis da Garota. Ora vejamos…
A Garota, com o seu ar Frida-Kahlo-meets-cigana-bonita-dos-eighties, não é apenas cool as fuck por desprezar todas os códigos vigentes de coolness. A Garota não é só uma exímia escritora de canções, driblando palavras com uma invulgar desenvoltura. A Garota não tem somente uma voz linda e expressiva e frugal, com um horror sadio a estéreis “rodriguinhos” na areia. A Garota não é apenas a mais ilustre “neta” do mestre Zeca, “ressuscitando” a canção de protesto em Portugal. A Garota é tudo isto mas o essencial está noutro lado, nessa tal capacidade de baixar as defesas da gente, abrindo-nos o dique das emoções. Porque tem a coragem de ser ela própria, porque partilha connosco “os segredos dos locais, que no fundo são iguais em todos nós”, levou-nos sexta ao tapete. Ou, melhor, levou os outros, pobres plebeus. O escriba deste texto nunca cometerá a vulgaridade dessa coisa, como se chama?, sentimentos…
Uma pessoa até fica a duvidar que isto é sobre si. Que texto tão incrível.
Obrigada pelo vosso apoio. Obrigada por seres um cínico tão disposto a receber o outro, Ricardo Romano.