A voz dos Everything but the girl regressa com o seu melhor disco a solo, um manifesto pessoal e feminista movido a sintetizadores e que é coração e cabeça em partes iguais.
Tracey Thorn cantou com Paul Weller e com os Massive Attack. Escreveu uma excelente autobiografia. Fez música para filme e peças. É colunista de jornais de referência. Mas, na verdade, Thorn sempre será conhecida como a rapariga dos Everything but the Girl.
Desde o fim da banda, no final da década de 90, a cantora não tem estado parada. Tem cuidados dos filhos, escrito livros e artigos, editou três discos a solo que foram recebidos com simpatia mas com pouco mais. Até agora.
Agora, acima dos 50 anos, os filhos estão criados e saíram de casa. Familiares e amigos começam a adoecer e alguns a morrer, numa aterradora normalidade biológica. Londres é cada vez mais um resort exclusivo para os ricos do Oriente. O Brexit foi uma chapada na cara de todos que, ingenuamente, acreditavam que o Reino Unido era aberto e progressista. E Thorn, uma mulher que sempre soube aliar sensibilidade e inteligência, faz, em 2018, o melhor disco da sua carreira.
Record é um catálogo de temas que interessam a uma mulher madura, inteligente, lúcida e lutadora, que se sente naturalmente assustada com a idade mas cuja resposta é voltar à carga, voltar à luta. Porque, sejamos francos, que outra opção tem ela? Que outra opção satisfatória tem qualquer um de nós?
A própria Thorn assume Record como um disco feminista. Mas não é um disco panfletário, construído em cima de slogans ou de frases-feitas. É um álbum profundamente pessoal, que visita bocados da vida tão importantes e tão duros como a maternidade, e a consequente falta de propósito quando os filhos já não precisam de nós; o passar do tempo, que só acelera; a condição de ser mulher, e como tal oprimida, ainda em 2018; o amor e a desilusão; e a esperança de redenção, que nos faz, ainda assim, avançar.
A matriz sonora vai beber muito aos dois fantásticos últimos discos dos Everything but the Girl, aquela pop electrónica e dançante, com a voz de Thorn, um poster acabado de depressão urbana, a pairar por cima de tudo. A sua voz, na verdade, está diferente. Continua reconhecível de imediato mas perdeu algum daquele toque cristalino, apenas para ganhar uma gravitas e uma autoridade que só a idade traz.
O grande destaque vai para o estrondoso “Queen”, que abre o disco e que se arrisca a ser uma das enormes músicas deste ano. É um single poderoso, encharcado em electrónicas e uma estrutura muito New Order (saudades!). A apresentação faz-se com o verso “Here I go again, down that road again“, com Thorn a questionar-se se vale a pena voltar, quem é, o que teria sido se não tivesse encontrado o amor, que papel tem afinal. “Am I Queen?/A Majesterial has been/I’m on fire/A head full of desire/This is me/I’m someone else entirely“. “Queen” é uma bomba de magnífico synth-pop, e só esta música faria valer o disco.
A chave de Record, no entanto, está em “Sister”, mais de oito minutos de um pessoalíssimo manifesto de condição feminina: “You are the man, but i’m not your baby
I get so scared, I know you own the world/And I fight like a girl/But I am my mother, I am my mother now/I am my sister and I fight like a girl“. Para poucas linha depois, nos lembrar: “Oh what year is it/ still arguing the same shit/What year is it?/Same, same, same old shit“. Um tema lento, maquinal, arrepiante.
Apesar de ter apenas nove temas, o disco acaba por não ser totalmente uniforme, resvalando num par de temas para alguma banalidade synth/disco que prejudica a qualidade global de um álbum, fora isso, muito forte. Record termina, de forma apropriada, com “Dancefloor”, que não é uma música particularmente memorável mas cuja letra encerra o ciclo, ou melhor, o reabre. O desejo de uma mulher que já teve filhos, já travou guerras, já abandonou a música ao vivo devido ao terror do palco, que já perdeu amigos e pais, e que tudo o que deseja, em certos dias, é perder-se numa pista de dança, com algumas bebidas e a música a tocar.
Record é, assim, um disco inteiro, de uma mulher inteira. Um trabalho corajoso, profundo, sensível e inteligente, de uma voz que nos acompanha há uma vida. Bem-haja.