Último Siso é o mais recente disco do português Éme. Lançado em Setembro deste ano pela Cafetra Records, é um passo à frente face ao anterior Gancia, de 2012. O anterior já era uma procura de um espaço próprio na música nacional, com inspirações no folk, dedilhados acústicos intimistas e momentos mais livres. Era, em suma, um disco promissor, mas este Último Siso é diferente: mais coerente e equilibrado, é um disco pouco preocupado com a estética lo-fi, mas antes focado na utilização maleável da língua portuguesa ao serviço de canções pop.
As melodias são boas: pop, quase dançáveis, com groove no ritmo das canções (e aqui se nota um pouco a influência tanto das harmonias orgânicas de B Fachada como na limpidez de Luís Nunes, a.k.a. Walter Benjamin). A voz de Éme soa mais determinada e sobretudo segura; e as letras, para além de terem sempre uma correlação harmónica com as melodias (palavras cantadas no momento certo, com o tom certo, de métrica apurada), têm a escrita do seu lado: aqui ouvirão referências ao Cais do Sodré, ouvirão a expressão «dizer merda» e ouvirão abreviações variadas – estou transforma-se em tou; mesmo assim transforma-se em mem’assim; para mim e para ti transforma-se em p’a mim e p’a ti; e Lisboa transforma-se em Lisa. Não é, ao contrário do que possam pensar, incorrecções ou desleixo: é escrita coloquial e feita para ser falada e cantada, é escrita corrente e diária e é escrita urbana, viva e popular.
Éme tanto é capaz de cantar «Não copio, eu só saco / O que tenho é tudo meu / Andei a ver como o de trás faz» como logo de seguida nos atira «Para ser mais opaco / Transparente já sou eu / Na minha campa o capataz jaz». Tudo na canção «Escolhe o Teu Veneno», que após umas quantas audições nos deixa a letra alojada na cabeça, é capaz de reagir de imediato quando ouvimos o ritmo da melodia a começar; em particular os versos «Ninguém me avisou que eu / Ia ser assim», que são (aparentemente) tão simples e jogam tão bem com a melodia que ficam na memória.
«Um Lugar» é outra das grandes canções do disco. Um grande single, com Éme a cantar «É tão difícil de encontrar / Um lugar» (esta última palavra arrastada) de forma suficientemente clara para que percebamos que é manifesto do disco. Mas uma audição atenta detectará, por exemplo, a expressão «Tou no futuro / A achar presente», e isso é Éme: escritor de canções de sentido pop apurado, inteligente na forma como oferece o óbvio de bandeja, mas igualmente capaz não só de fazer do óbvio algo bem vasto na sua aparente simplicidade e leveza (refiro-me, entenda-se, ao refrão), mas também a, aqui e ali, nos ir oferecendo frases, jogos de palavras e declarações confessionais extremamente ricas.
«Cara Que Tenho» começa quase infantil e ingénua, com uma melodia sonhadora que, ainda assim, alberga essas frases confessionais e dúbias de sentidos inesperados («Mas se isto fosse tudo / Só por cordialidade / Não era tão transparente / Que não tenha idade»); mas a melodia, note-se, permite algumas frases destas mantendo a veia pop. É nesta canção, também, que assistimos a um dos momentos mais espaciais, com ruído e distorção rock a desconstruir o que tem, levando-o por uma viagem até novos territórios.
«Confusão» é outra grande canção que resulta do tacto de Éme na definição do ritmo da melodia e das palavras, par a par, e é mais uma das canções onde a melodia algo alegre equilibra muito bem com os relatos confessionais despiedados («E a confusão vê-se na minha cara» ou «Porque é que quando eu digo merda ninguém pára?»). O mesmo acontece com «Temos Medo», tema que tem versos duros – arriscaria até dizer desiludidos – e directos («Baixa o corpo / Não fales com ninguém / Qu’isto é torto, não há quem / Faça bem / Não há ninguém»). E há ainda «Lisa», uma música sobre Lisboa, com referências ao Cais do Sodré e um refrão aparentemente anti-lisboeta («Viver na Lisa não dá / Não dá, não») que fica no ouvido: primeiro ao ser cantado, por fim ao ser gritado sem medo.
A viagem termina com «Partilhar a Vida», uma canção intimista, com um belíssimo arranjo de guitarra acústica. O culminar do disco com ela é quase uma resposta a tudo o que vem antes: é uma canção pacífica q.b., como todas as boas canções pacíficas, onde a aceitação está presente: depois de todas as dúvidas, confissões e declarações, é como se ouvíssemos aqui Éme cantar um «tá-se bem» que se encontra implícito, e onde há conselhos humanistas dados aos ouvintes («Espero que saibam partilhar a vida / A minha já vai comprida»).
Decifrar o sentido do que Éme canta é um desafio, é claro. E atrever-se a fazê-lo é um risco. Ouvir com prazer estas canções, pelo contrário, é do mais fácil que existe. Da minha parte não pude deixar de referir todas as canções do disco, à excepção da inicial «Não Tratei». É sinal da coerência lógica do disco: faz sentido do início ao fim, cada canção é única e diferente mas alinha ao mesmo tempo no mesmo campeonato das outras. São sete potenciais singles. Último Siso é um nascimento novo, uma mudança culminada. É um disco pop, despretensioso, vivo e urbano, mas sobretudo bom. É acessível e melódico, sem que deixe de ter camadas, frases e surpresas que o tornam singular. É pop que não cansa, é canções modernas e urbanas, despudoradas, embora completas. Quem disse que a música popular era facilitista? Não falta cá nada, de facto, e estamos mesmo perante um dos melhores discos nacionais do ano.
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