Estou no Lux às 11 em ponto, e já há fila.
Nada como abrir um texto com algo insólito, e o estranho não é a fila, isso é familiar para os da casa, mas não pude deixar de rir com estranheza ou ingenuidade perante as 11 badaladas e a fila já composta.
Sou uma novata no que toca a falar sobre música electrónica, mas sou curiosa e persistente, e este universo, que abrange galáxias que passam pela música ambiente, o techno, drum n’ bass, breakbeat, transe, tribal, garage entre outros, e influenciando quase todos os géneros musicais como o rock ou o reggae, é no mínimo, vá lá, fascinante. Há sempre coisas para se dizer, e o que dizemos ou definimos, parecido com o que acontece com o resto das artes, ficará sempre incompleto. Contudo cá estamos, são 11 e meia, e Kisluk, ou Doni, ou mesmo Daniel Kisluk, abriu a pista do meio do Lux. Uma pista vazia, malta dispersa, uma varanda cheia de conversas com cigarros mal acabados e as miúdas a tirarem ainda os casacos para mostrarem os tops curtos e as calças justas dignas da festa que os Buraka nos prometeram.
Uma qualidade que tenho vindo a admirar dentro do mundo dos disc jockeys é a coerência, e não estou armada em pedante que tenta arranjar adjectivos para que os músicos sejam melhores músicos, não é isso. Um DJ tem de saber ler o ambiente do local para adaptar, dentro do seu género, a música que irá passar. Ninguém quer estar num sunset às 3 da tarde e estar a ouvir um frenesim de ácidos e máquinas a vapor, como ninguém quer estar às quatro da madrugada a ouvir um pré-embalar de notas calmas que nos fazem lembrar as ondas do mar, o sol do Verão, e mais precisamente, a cama e a nossa almofada. Não, nada disso, o que se quer, mesmo sem sabermos, é que o DJ seja coerente, e o Kisluk foi e muito. Leu-nos com uma pinta que, passado nem 15 minutos, a malta deixou as conversas de esquina, apagou bem os cigarros, e os beats de blues, latin, afro beat, soul, hip-hop, funk, reggae e dancehall arrastaram-nos para o meio da pista de dança com a sensualidade que pedia. A surpresa não foi o conhecimento vasto sobre música de Daniel Kisluk, foi, para mim, a posição firme que tomou em relação ao estilo. Seria muito fácil cair para dentro de géneros e sub-géneros do kuduro, passaria despercebido e as pessoas dançariam à mesma, mas Kisluk passou o que sabe melhor. Com a presença de Kalaf, que subiu para o palco de modo a entreter o público, o ritmo continuou, e o próprio fez questão de nos mostrar como é que se dança.
Os tops curtos e as calças justas a rabos que roubam o olhar, estavam em sintonia com as batidas. Eles e elas puderam dar vida ao termo hard-ass-sessions, com os movimentos circulares e lentos da cintura para baixo. Doni deu-nos um aquecimento digno de uma temperatura ambiente elevada.
Quando percebi que o concerto dos Buraka estava para começar, fiz uma ligeira corrida pelas escadas abaixo. Começam as corridas e começa o excesso de excitação por parte do público. Meia hora antes de começar e já a fila da frente estava ocupada com um género de corrente de força humana que intimida qualquer um a tentar ultrapassar. Dá vontade de pedir que relaxem um pouco.
A ideia de ter trazido uma máquina fotográfica grande, quase maior que eu, começa a deixar de ter sido brilhante quando, eu própria, sinto o bichinho da batida e o espaço a reduzir, ao som das primeiras notas do sintetizador. Não há espaço para um espirro sequer e o bonito deste concerto é essencialmente o público. É quase como uma interligação excepcional entre artista e plateia. Blaya, Kalaf, Branko, Conductor e Riot entram no palco : “Estão prontos?” Estão prontos?” E sem dar por mim, já estou aos saltos.
Os Buraka alternam entre as mais antigas, que nunca cansam, como Yah, single do seu primeiro álbum From Buraka to the World, lançado em 2006, ou faixas como Kalemba, Sound of Kuduro, Aqui para Vocês, saídas de Black Diamond, e as mais recentes como We Stay Up All Night ou Tira o Pé, do álbum Komba, uma oferta do passado e do presente.
Não sei se foi do êxtase que se sente quando mais de 200 pessoas saltam e se empurram, ao mesmo tempo, num espaço reduzido, se foi da euforia de tentar cantar mas as cordas vocais já não respondiam, e o corpo vai vacilando depois do exercício constante de coordenar os pés com o rabo, e as pernas com os braços, ou se foi de sentir que as paredes do Lux-Frágil não aguentariam. O que sei, é que Buraka aprecia-se essencialmente com o corpo, é música para os nossos ossos, para os nossos músculos, um estimulante sonoro que activa a parte motora do cérebro reduzindo a parte racional.
Nada do que se faz, ou se dança, ou se grita, faz muito sentido e seria certamente engraçado observarmo-nos na terceira pessoa enquanto estamos num concerto de Buraka.
E salta e pula e mexe e grita. Gritámos por mais: “Querem mais? Não estão cansados? E o calor?”- diz Kalaf, que abre portas para Stoopid, primeiro single, que estreou este mesmo ano, do mais recente trabalho, Buraka.
Saltam bolas de plástico entre o público, à mesma velocidade das horas rápidas, típico de quando o divertimento é grande e o tempo passa despercebido.
Estamos no fim. Já se dão as últimas cartas para o pagode e despedimo-nos dos últimos movimentos descoordenados e pés pisados. O grupo sai com um adeus quente e movimentado.
Buraka Som Sistema é uma banda solidificada que marcou o seu lugar dentro da música electro zouk e kuduro, sendo impulsor de uma nova geração mais “mulata”, que, outrora, era escassa e remota, aproximando Angola a Portugal .
É difícil, ou, quase mesmo impossível, falar de kuduro progressivo sem referir esta banda e isto observa-se essencialmente pela postura que tomam em palco. O intuito que os move não é necessariamente mostrar a diversidade ou a mudança de álbum para álbum, a linha é clara e foi imposta desde o início. As variantes aparecem, por exemplo, em pormenores, que não são menos relevantes, como um álbum com artistas convidados ou não, mais instrumental ou mais cantado.
Podemos afirmar, sem pretensiosismos, que os Buraka recriaram o kuduro progressivo português, a inconfundível marcha africana com os sintetizadores electrónicos, baterias e misturas, que dá pouco espaço para que, pelo menos por agora, outras bandas consigam seguir este caminho sem que sejam, sempre, ou quase sempre, associados a este grupo. O pódio é deles, eles sabem-no, e mostram: a Buraka é dona do terreno. Sai, Sai,Sai.
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Texto e fotos por Filipa Dornellas