
E pumba. O velho Moz fez das suas outra vez. Com o espectro do concerto desmarcado ainda a pairar sobre as nossas cabeças, a malta acabou o espectáculo com algum fel na boca: quase 40 euros (chiça, doeu!) para quase nenhum êxito a solo da velha guarda. «Suedehead», «Everyday Is Like Sunday», «The Last of the Famous International Playboys»: todos os clássicos estiveram ostensivamente ausentes. Mesmo a maior parte dos hits mais recentes pós-You Are the Quarry (singles certeiros como «Irish Blood, English Heart» e «You Have Killed Me») não quiseram nada com o Coliseu dos Recreios. No seu lugar, metade do alinhamento foi preenchido por canções que ninguém conhece do novo álbum de que ninguém gosta. Com uma agravante: devido a conflitos editoriais, World Peace Is None Of Your Business nem sequer está à venda em lugar algum. Última cereja de obscuridade num bolo já de si amargo.
Quer tudo isto dizer que não gostei do concerto? De maneira nenhuma. Queriam um espectáculo certinho, sem risco, com muitas canções penteadinhas para encher a vista? Fossem ver a Madonna. Se veneramos o tipo que lutou quase sozinho contra a mediocridade empacotada reinante nos anos 80 (louros partilhados com o mago Johnny Marr), não será precisamente por ele nunca ter querido agradar a ninguém, rompendo com todas as normas e expectativas da indústria musical, do politicamente correcto e até do bom senso?
Sim, é verdade. As canções do novo álbum não entram logo no ouvido. São mais densas, menos orelhudas, requerem uma audição mais cuidada. Mas serão por isso menores? Como sempre acontece em matéria de gosto, as opiniões dividem-se. Os mais cínicos acharão que o Moz em modo-concerto-de-flamenco-no-cocktail-bar-do-hotel-Madrid não é o seu momento esteticamente mais feliz. Eu cá estou do outro lado da barricada, daqueles que consideram WPINoYB um bom disco, denso e difícil, que requer mais persistência do que a que estamos habituados a oferecer à indústria do entretenimento pop.
E, bem vistas as coisas, os que queriam canções antigas não têm grandes razões para se queixar. Tiveram as mais velhinhas possíveis: quatro grandes malhas dos Smiths (passo a redundância). Para nós – fãs nostálgicos e saudosistas, por temperamento e educação –, foram os momentos mais significativos do concerto. Experiências quase religiosas.
Depois da preliminar frase «Acredito que vivemos num mundo duma violência sem precedentes», Moz abriu as hostilidades com a icónica «The Queen Is Dead», dando assim o tom contestatário que dominou a noite. E que bem que rimou esta canção com os vídeos projectados em simultâneo: a rainha de Inglaterra a fazer-nos o manguito, fotos do príncipe herdeiro com a legenda «United King-Dum», graffitis com a frase «A Thatcher morreu. Lol». Na mesma lógica subversiva, todos os membros da sua banda vestiam t-shirts com as palavras «Fuck Harvest» estampadas a letras gordas, um mimo à editora que vetou WPINoYB à condição de órfã, três semanas após a sua edição. Os 30 quilos que Moz tem agora a mais (consumo excessivo de tofu, dirão os mais avessos à causa vegetariana) não lhe retiraram um único grama de insubmissão.
A segunda canção dos Smiths foi a muito acarinhada «Hand In Glove», clássico incontornável onde tudo começou.
Seguiu-se a acusatória «Meat Is Murder», com Moz a confrontar-nos com as imagens sórdidas da máquina de tortura e matança a que chamamos pecuária industrial. E pregou-nos, cheio de razão: «I can’t see it: why should I care? It’s not me: why should I care?» (Como me soube a culpa retroactiva o prego mal-passado e sumarento que eu havia comido uns minutos antes numa cervejaria nas Portas de Santo Antão.) O velho activista dos direitos dos animais encerrou o seu número político instigando o público a vandalizar com sprays todos os anúncios ao McDonalds que poluem «a nossa bonita cidade».
No final, já no encore, uma última canção da velha guarda: a melancólica «Asleep», provavelmente o lado B mais belo e triste de toda a história da pop. Onde «Meat Is Murder» é horror e indignação, «Asleep» é abandono sem redenção, no fundo os dois pólos opostos entre os quais Morrissey sempre baloiçou.
As demais seis canções vieram dos álbuns Years of Refusal, You Are the Quarry, Maladjusted, Vauxhall and I e Your Arsenal, com destaque para as emblemáticas «I’ve Thrown My Arms Around Paris» e «First of the Gang to Die» – esta última já cantada no encore.
Enfim, um concerto que decepcionou muita gente pelo alinhamento de difícil digestão, mas que contou com um Morrissey em óptima forma, cujo timbre de voz e irreverência nos fez lembrar muito um magricelas de óculos desengonçados que há 30 anos inventou o indie moderno. O resto é só fumaça.
[wzslider lightbox=”true”]
Fotos: Alexandre Antunes/Everything is New
Alinhamento
The Queen is Dead
Speedway
Certain People I Know
The Bullfighter Dies
Kiss Me a Lot
I’ve Thrown My Arms Around Paris
World Peace Is None of Your Business
Istambul
Neal Cassady Drops Dead
Earth is the Loneliest Place
Trouble Loves Me
Kick the Bride Down the Aisle
One Of Our Own
I’m Not a Man
Hand In Glove
Meat is Murder
One Day Goodbye Will Be Farewell
Encore
Asleep
First of the Gang to Die
O alinhamento foi o que queria e esperava. Quanto a Morrissey, foi absolutamente perfeito. Grande voz, sentiu-se o que é um artista real feito de emoção e entrega. Se alguém se queixar do alinhamento é porque comprou os bilhetes para o concerto errado. Havia lá à venda bilhetes para o David Carreira.
Tudo isso! Dois dias depois, ainda não deixei de pensar no concerto, e isso quer dizer alguma coisa. Também eu gosto do último disco, mas de facto o alinhamento deixou muita gente insatisfeita. Não terá sido um grande concerto, mas foi certamente um concerto muito especial e estou muito feliz por ter lá estado. Well done.