Tether não é só um disco: é um mapa para a nossa alma, onde as bússolas com que nos orientamos são uma viola, uma voz transcendental, silêncios e a certeza de que cada nota mexe com as nossas emoções.
Um dos grandes mistérios da humanidade é o funcionamento da memória. É um tema pelo qual sempre tive curiosidade, entender como funciona o processo de seleção do nosso cérebro, dos momentos a guardar na hard drive, e quais simplesmente descartar, largar ao esquecimento. Haverá com certeza por essa internet fora material mais académico, mais profundo, mas queria só aqui elencar muito rapidamente três objectos que me parecem pertinentes sobre o tema:
- Na Netflix há um episódio da série Resumindo bastante simples e interessante, com explicações científicas e exemplos reais de pessoas e a sua relação com a memória;
- Um dos meus filmes favoritos, Memento, onde a memória desempenha um papel essencial da narrativa;
- A obra “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, (cujo início de leitura adiei mais uma vez, agora para as férias do Natal deste ano), na qual é peça central o cheiro da madalena molhada no chá, e as memórias que lhe estão associadas.
Serve esta introdução para chegar ao seguinte statement – a música é, segundo a minha experiência pessoal, a melhor forma de ligação com os arquivos do cérebro. Tenho vários momentos passados da minha vida associados a músicas, e o efeito nostálgico de os reviver, sempre que essa canção chega aos ouvidos, é arrebatador. Num deles, um jovem Alex de 15 anos vai ter com a sua mãe, para partilhar que está apaixonado. Mas não por uma pessoa, por uma música, no caso tratava-se de “Fields of Gold”, do Sting. Essa paixão está ultrapassada, felizmente, mas o momento ficará para sempre. Noutro, um jovem Alex de 13 anos dança com uma rapariga, numa das primeiras festinhas com pouca luz e slows a passarem, ao som de “Baby can I hold you”. Será juntando estes dois que me vou agora debruçar sobre o caso da senhora Annahstasia.
Primeiro, o estar-se apaixonado por uma música – sim, é possível. Há músicas que nos invadem, nos remexem, nos conquistam, nos levam para sítios diferentes de onde estamos fisicamente, e o sentimento que fica à flor da pele arrepiada será, no meu entendimento, de paixão. Acontece-me com “Overflow”, canção mais arrebatadora de várias arrebatadoras que constituem Tether. O disco arranca logo com intensidade nos píncaros, ao primeiro segundo que nos chega aos tímpanos a voz de Annahstasia.
A voz de Annahstasia é daquelas que parece ter nascido antes do tempo ser tempo — uma mistura rara de força e fragilidade. Há nela uma densidade que lembra Tracy Chapman (e cá está, o segundo momento na memória do jovem Alex), mas também uma doçura aérea, quase espiritual, que a aproxima de Nina Simone nos momentos mais introspectivos. O timbre é aveludado, quente, com um grão natural que faz cada palavra parecer vivida — não dita, mas respirada. Quando canta em registo baixo, como em “Be Kind”, “ou “Unrest” soa como quem confessa algo em segredo; quando sobe, como em “Villain” ou “Silk and Velvet” a voz ganha corpo, rasga o ar com uma clareza que emociona sem precisar de volume.
Em Tether, essa voz é o centro magnético de tudo, mas a base sonora sobre a qual assenta não pode ser esquecida – a produção cresce em camadas, mantendo o folk como espinha dorsal, mas orquestrando espaços para metais, guitarra acústica, um sopro de grandiosidade que serve para elevar ainda mais a voz. E quando, em “Believer”, tudo se conjuga num quase-gospel, percebemos: o poder de Annahstasia não está em dominar a canção, mas em torná-la humana — imperfeita, pulsante, viva.
Voltamos a “Overflow”, sublime em todos os aspectos, tremor de terra, pele de galinha, irrepreensível e emocionante, letra contundente:
I’m going down in your history
It’s not up to you
It’s not even up to me
So let’s take this down to the watering hole
To feed ourselves.
To feel full
É caso para dizer: “Mãe, estou apaixonado”.