Todos temos os nossos heróis de culto. Os nossos pequenos artistas. Os nossos íntimos desconhecidos, que escondemos egoistamente dos outros e sobre os quais temos a sensação de serem da nossa exclusiva propriedade.
Era desta maneira que olhava os Pop Dell’Arte, até à noite de 10 de outubro no Lux. Nessa noite, a falsa solidão em que pensava ouvi-los caiu e desfez-se em pedaços ao deparar-me com a fila para entrar, que, como manda a tradição das filas longas, até fazia um “S”. Senti-me entre familiares que já não via há séculos, daqueles que só se vêm em alguns Natais e um ou outro funeral. Aliás, queria abraçar aquela gente toda, pois, na altura, era um pequeno e triste órfão acabado de ser acolhido por centenas de pais.
Entrámos, passámos pela segurança, subimos um grande lance de escadas, andámos um bocadinho, descemos um grande lance de escadas e voilà. Mais gente. Isto é, mais família. Chegámos finalmente ao recinto do concerto. Só que ainda faltava um bom tempo para eles sequer pensarem em começar. Bebemos umas quantas para nos entretermos e eu fui examinando subtilmente a população da sala. Suspeitava encontrar algumas caras conhecidas. Não me refiro a famosos. Refiro-me a caras que conhecia por qualquer encruzilhada de destinos. Ao longo da vida fui olhando desconfiado as pessoas, na exaustiva missão de perceber se ouviam ou não Pop Dell’Arte. Pois, estranhamente, ninguém parecia querer admitir. Às vezes, ao passar pelo meu vizinho nas escadas, chegava a ignorar por completo o que ele me dizia e apenas semicerrava os olhos, enquanto a minha mente esforçava-se para nele reconhecer sinais de uma audição recente de baterias esfuziantes, linhas de baixo infeciosas, guitarras profanas e uma voz bêbada na sua própria poesia. O indício mais comum é algum sangue perto da zona dos tímpanos.
Não encontrei o meu vizinho, infelizmente. Dava jeito. Assim arranjava outro assunto que não a meteorologia ou a subida do preço das castanhas brasileiras para debater com ele no nosso próximo encontro nas escadas. Mas encontrei alguns vagos conhecidos e subiu-me à cabeça uma espécie de sentimento de realização. Sorvi a minha imperial e sorri.
As luzes apagaram-se de rompante e quatro figuras entraram no palco sem dizer uma única palavra. Algumas palmas de entusiasmo são batidas. Nós acabámos de um trago o que restava dos nossos copos e aguardámos em suspense. Faltava alguém. Um manto negro segue silenciosamente por entre a banda e detém-se junto do microfone. Era João Peste. Um frenesim imenso encheu aquela cave de assobios estridentes e gritos de significados impercetíveis. Sabia apenas que todos os que ali estavam veneravam o vulto moreno e ossudo que, humildemente, tal soberano a seus súbditos, nos saudara com um lacónico “boa noite”. Longa vida ao rei.
A bateria deu a ordem de início. Logo a seguir, o baixo, que depois encorajou a guitarra e esta puxou, por fim, a voz. A primeira nota exalada por João Peste ressoou em mim como uma velha memória. No meio de tanto ruído, permaneci em silêncio durante algum tempo. Estou cá. Voltei a conectar-me com o som circundante, que punha as colunas de onde saia ao teste. Começaram com a música de entrada do álbum celebrado, Free Pop. Pungente “Berlioz”. Tentaram tocar grande parte do álbum e ainda arranjaram espaço para alguns desvios. João Peste parecia uma flor imperturbável que ondulava os seus delicados braços no olho do furacão. Cantava como se não estivesse ninguém a ver. Nunca parecia ceder à envoltura frenética da música e, na maior parte das vezes, permanecia de olhos fechados. Apatia seria uma conclusão precipitada.
O alinhamento foi uma constante festa. Houve um ou outro momento para respirar, mas os ritmos excêntricos sempre voltavam mais fortes. O público reagia aos dois da mesma forma: cruzavam os braços e balançavam lentamente a cabeça. Rapidamente passei de querer abraçar aquela gente toda para querer distribuir chapadas àquela gente toda. Lá mais à frente, junto do palco, via alguns braços no ar e algum tipo de expressão de felicidade. Eu, por outro lado, sentia-me rodeado de múmias. A intelectualização da música dá nisto. O secretismo de algumas bandas pode vir de uma maligna altivez dos seus ouvintes. Inventam critérios, requisições e QIs de 160 sobre o entendimento da música, destruindo tudo o que nela existia de lúdico. Tiram-lhe a música e ficam apenas as notas.
Os Pop Dell’Arte podem nunca vir a receber a aclamação que merecem. E isso poderá muito bem dever-se a estes disseminadores virulentos do hermetismo. De qualquer modo, o concerto foi um espetáculo. O egoísmo pueril com que os olhava desvaneceu e partilhá-los com o mundo pareceu-me subitamente uma obrigação.