O disco de estreia dos 808 State, Newbuild, não foi só um dos primeiros álbuns britânicos de acid house. Foi também um dos melhores.
O acid house nasce em Chicago em meados dos anos 80 mas depressa migra para o Reino Unido com um estatuto muito especial: a música oficiosa da cultura rave que lá emerge, movida a ecstasy, celebrando o prazer da dança – e o prazer, ponto -, vestindo-se com roupas largas e despretensiosas – Ibiza style -, espalhando a paz e o amor por todo o lado, inclusive pelos lugares mais improváveis, como entre claques rivais de futebol, tal é o poder salvífico do MD. As suas inclinações anti-individualistas e anti-materialistas fazem um corte com a cultura yuppie dominante nos anos 80, que exortava à ganância e ao culto boçal do eu, eu, eu. Pelos muitos paralelismos com a cena hippie de ’67 chamou-se a esta insurgência de “second summer of love”, encetada em ’88 e tendo como epicentro Londres, Glasgow e Manchester.
É na cidade da Haçienda que nos queremos concentrar, a mítica discoteca associada à Factory Records e aos New Order, que funcionou como o quartel-general no norte de Inglaterra para a invasão acid house. Ora para nós, que vimos do rock, quando nos falam nestes nomes pensamos logo na cena madchester, quando o próprio indie rock de Manchester e arredores – Happy Mondays, Stone Roses, Inspiral Carpets… – se deixa contaminar pela nova cultura de dança. Mas, recordemos, estamos ainda em ’88, teríamos que esperar ainda um a dois anos para madchester explodir. Por enquanto, falamos de acid house puro, sem concessões ao rock, até, em muitos aspectos, rebelando-se contra ele. Veja-se, por exemplo, a indiferença pela imagem e personalidade dos seus artistas, uma preferência pelo anónimo e pelo colectivo. Nesta nova cultura não há vedetas, a estrela é o próprio público dançante.
Se nesta primeira etapa se importava da América a maioria dos discos, alguns beefs começaram a aventurar-se na produção de acid house caseiro. Manchester deu-nos dois grandes nomes, 808 State e A Guy Called Gerald, e o disco de estreia dos primeiros, Newbuild, tem sorte porque faz a dobradinha: o gajo chamado Gerald James ainda está na banda, ensopando-a com o seu poderoso vodu.
Dissemos que Newbuild é acid house mas ainda não explicámos o que raio isso é. Ora cá vai: é house porque tem a batida “untch, untch, untch, untch”; é acid porque usa – e abusa – do som aborrachado e aquático do Roland 303. Em Chicago, esta textura borbulhante sabia apenas a futuro. Na Manchester de ’88 o mesmo insólito timbre adquire um novo significado: o arrebatamento induzido pelo ecstasy. Mudam-se as drogas, mudam-se as percepções…
Newbuild, sendo de ’88, não foi programado num computador mas sim em máquinas analógicas. Ora, neste contexto, analógico não quer dizer quente e orgânico, bem pelo contrário; veja-se o caso da drum machine Roland 808, com as suas batidas desumanas de tão precisas, orgulhosamente gélidas e robóticas.
Mas o futurismo radical de Newbuild não decorre só destes sabores sintéticos; a própria recusa do formato canção – deixando a melodia e a harmonia para um segundo plano, para dar mais destaque ao ritmo e às texturas – rompe estrondosamente com a tradição. Melodias demasiado bonitas, e progressões de acordes demasiado complexas, são cuidadosamente evitadas para não distrair os corpos do essencial: dançar, dançar, dançar, sentindo com cada milímetro do corpo a sensação pura do som.
Os tempos de Newbuild são frenéticos, espelhando e ampliando a euforia induzida pelo ecstasy. Tudo é despido e austero, com o mínimo de elementos possível, pois a sua pujança decorre mais do que se lhe tira do que daquilo que se lhe acrescenta. Melodias muito simples, e ritmos muito salientes, são repetidos obsessivamente, para criar um efeito de transe. Essa monotonia hipnótica faz sobressair uma miríade de pequenas variações, na textura e não só, cada uma delas originando um enorme prazer sensorial.
Newbuild é, na sua essência, música instrumental. Das raras vezes em que a voz humana aparece é sobre a forma de breves samples, apenas mais uma textura percussiva. Para compensar a austeridade melódica – deliberadamente procurada – há uma extraordinária riqueza polirrítmica, vários ritmos sincopados e independentes formando uma complexa teia de cadências.
Não foi à toa que um dos nomes mais respeitados da electrónica britânica, Aphex Twin, resgatou do esquecimento Newbuild, reeditando-o na sua Rephlex Records, e dizendo sobre ele o seguinte: “foi uma evolução face ao acid house de Chicago, o qual, por mais que o ame, não me toca tanto como este disco dos 808 State, mais frio e mais humano ao mesmo tempo.” Perspicaz o bandalho…