“Experiência é simplesmente o nome que damos aos nossos erros” – Oscar Wilde
A cerca de um mês de regressar a Portugal para um concerto no Coliseu dos Recreios, apresentando um novo disco, Morrissey continua a coleccionar polémicas. Há mesmo muito boa gente que duvida que esse espectáculo se venha mesmo a realizar, dado o histórico de concertos cancelados ao longo dos últimos anos, inclusivamente em Portugal. A verdade é que o antigo vocalista dos Smiths parece escolher sempre o caminho mais difícil, procurar sempre o confronto, fazer-se de vítima, isolar-se, abusar da paciência das suas editoras e até mesmo dos seus fãs.
E tudo começou, num subúrbio de Manchester, há 55 anos.
Steven Patrick Morrissey nasceu em 1959, no hospital público de Pendlebury, em Salford, Manchester. Vindo de uma família irlandesa deslocada – e sendo apenas o segundo elemento do clã a nascer em solo inglês – o bébé veio a este mundo já a causar problemas: a sua cabeça enorme e pouca vontade em nascer colocou em sério risco a vida da sua mãe, com ambos a ficarem hospitalizados. Um começo eloquente para quem passaria o resto da vida a lutar (muitas vezes contra inimigos invisíveis) e a arranjar sarilhos. Morrissey descreve estes tempos na sua extraordinária autobiografia, lançada no ano passado: “desaparecendo debaixo de um monte de cobertores hospitalares, agarro-me à curta vida que já me havia trapaçado. Quando sou libertado do hospital, a minha irmã Jackie, mais velha por dois anos, é interrompida quatro vezes no processo de me tentar matar, e se isto demonstra rivalidade ou grande capacidade de visão ninguém sabe”.
A infância de Morrissey é marcada por duas tendências distintas, uma interior e outra exterior. No interior da sua casa, existe amor, atenção e espaço dado ao crescimento fantasioso das crianças; no exterior, Manchester decai, com os seus ladrões, doenças, falta de saneamento e perigos em cada esquina. A família, enorme como qualquer família irlandesa (com primos, avós e tudo à mistura nas mesma área de residência), vive perto de Old Traford, nos anos 60 uma zona decadente e que, devido ao crime e à fraca qualidade das habitações, se encontrava em acelerado processo de desertificação. Também a escola e tudo o que lhe é associado conspiram para agredir a sensibilidade do jovem Steven. Em vigor estava ainda o sistema de educação vitoriano, apenas beliscado e até piorado na sua austeridade pelos anos da Segunda Grande Guerra. É a escola dos castigos físicos, da repressão total de qualquer opinião ou instinto das crianças, da normalização à chibatada e aos olhares indignados de professores que parecem padres revoltados com a impertinência da exuberância juvenil. Morrissey conta como muitos dos seus colegas de turma passavam fome, e a forma como o sistema público de ensino os tratava. Depois de um amigo desmaiar, no meio da aula, Steven sentencia: “mas não há qualquer carinhosa terapia para estes confusos e privados miúdos, e não há nenhuma resposta ao que quer que eles digam que não seja mais violência e mais dor. Este é o sistema escolar de Manchester nos anos 60, onde a tristeza fortalece os hábitos, e onde a vergonha é marcada a ferro de gado em crianças que se encontram apenas à procura de alegria, no meio da inexorável desaprovação”.
Estes anos, como acontecem com qualquer pessoa, são fundamentais para formar o carácter e a forma de ver o mundo de Morrissey. Filho mais novo de uma família católica mas não demasiado austera, o rapaz recebia em casa o amor e o mimo que lhe assegurava a sensibilidade; apenas para ver essa sensibilidade pisoteada veementemente nas ruas de Manchester e nas instituições que ocupavam o dia das crianças. “Obviamente nada havia para proteger os direitos das crianças nestes locais, porque o conceito de elas terem direitos era estranho e porque, naturalmente, nunca nenhuma agressão poderia vir de quem nos educava”, ironiza.
Os choques com as autoridades são inevitáveis. Morrissey recorda quando, tinha ele 11 anos, foi incumbido de acompanhar um colega de escola a casa, porque este andava doente e poderia não conseguir regressar sem ajuda. Steven fê-lo, deixou o colega na sua casa confortavelmente instalado, mas quando regressou à escola foi veementemente repreendido pelo director da escola: “Seu idiota! Como pudeste deixá-lo só, doente, naquela casa?!”. Este momento acabou por ser definidor para o rapaz: “A cara torturada de Mr. Coleman revela o monstro para que todos o possam ver. Eu tenho 11 anos e atravessara muitas estradas principais e cruzamentos para tornar mais cómoda a viagem até Duke Street mas, como era moda de então, a culpa da deserção era toda minha, sem que a minha própria segurança fosse sequer assunto. A tarefa que me foi imposta, e a completa histeria de Mr. Coleman respondiam a uma importante pergunta, e eu nunca mais assumiria que qualquer figura de autoridade possuía automaticamente qualquer distinção intelectual”.
Sem surpresa, muitos dos seus ídolos eram anti-heróis ou rebeldes. A infância de Morrissey foi passada a ver televisão, as ‘soap operas’ imensamente populares, os filmes de romance e de mistério, os escassos programas infantis. Fora desse mundo, e numa altura em que se ouviam discos em casa mas ainda sem a obsessão de anos mais tarde, o primeiro ídolo não-televisivo do rapaz veio do mundo do futebol: George Best, o rei do Manchester United. “Best era inteligente e com piada, e tinha encontrado uma série de formas de tornar a sua vida glamorosa. O velho molde do jogador como tipo normal que fica em casa foi quebrado para sempre, quando Best diversificou a imagem do jogador de futebol, agora subitamente caprichoso e desordeiro e governado por ninguém. Ostentando uma vida de sucesso, é claro que Best é penalizado por divertir-se demasiado. No entanto, ele é uma revolução a trazer efectivamente uma avassaladora mudança na forma como o desporto é visto, porque ele é assumidamente agressivo com a imprensa e com as associações desportivas governantes enquanto, ao mesmo tempo, é um extraordinário jogador. A nobreza convencionalizada, como Bobby Charlton, haveria de demonstrar desaprovação dos hábitos de Best, porque George Best é o chocantemente novo contra o estilo de disciplina de fumador de cachimbo dos anos 50 de Charlton”. Morrissey, obviamente, adorava o “Beatle dos campos de futebol”. Chegou a vê-lo jogar, levado pelo pai quando tinha oito anos, mas logo aí começou a demonstrar tendência para arruinar um espectáculo. O sol, a multidão ou a emoção, o certo é que o rapaz se sentiu mal e desmaiou, forçando o pai a abandonar a bancada e a perder o resto do jogo, com grande desagrado.
O resto da infância e o início da adolescência foi passado entre a dureza da rua – fez parte de gangues da vizinhança embora detestasse lutar – e o sonho que a televisão lhe trazia. É dessa altura o gosto pela música. Os pais de Morrissey compravam-lhe, de vez em quando, revistas de música e mexericos, que traziam as letras das músicas mais populares de então. Muitas vezes não as conhecendo, o rapaz inventava melodias para as palavras que via impressas à sua frente, fazendo canções na sua cabeça; mais, estava a estabelecer ligação com a música via a sua letra, algo que iria marcar para sempre toda a sua futura carreira. Em termos escolares, a St Wilfrids sucede St Marys, e nada muda. Aliás, o choque é ainda maior. A brutalidade sobe de tom, bem como as sementes de rebeldia de Steven, em quem começa a levedar um desejo de diferença e de afirmação de individualidade, o maior pecado de todos perante a escola dirigida por Vincent Coleman, o tal director. “Durante cinco anos, sou testemunha da monumental solidão de Coleman, à medida que ele se ocupa, dia após dia, com o espancamento de pequenos rapazes”. É natural que o jovem Morrissey estivesse entre eles.
Aos 13 anos, a grande transformação: a música torna-se obsessão. Aliás, os músicos tornam-se o centro da vida do rapaz, à cabeça de todos David Bowie, o mais extraterrestre de todos. “A confusão de 1972 traz-me uma explosão de música e arte e novidade e estava agora em pleno modo de desenvolvimento e sedento de liberdade de qualquer forma de censura”, explica. Ao ver Bowie na televisão – o “Top of the Tops” era visto com reverência religiosa -, tudo muda. “Assim que Bowie aparece, a criança morre”, descreve. A vida de Morrissey acelera a partir daí. Vê os T-Rex ao vivo, comparecendo ao concerto vestido “com um casaco de cetim púrpura – uma visão a pedir interpretação psiquiátrica”. Bowie (de quem consegue um autógrafo) e Marc Bolan são as figuras tutelares da sua nova vida, juntamente com os Roxy Music, os Mott the Hoople e Lou Reed. Por esta altura, Morrissey alterna longos períodos de doença com vários importantes feitos desportivos, nomeadamente no atletismo. No entanto, isso não é suficiente para afastar os rumores de homossexualidade, numa sociedade obcecada com o tema e com uma caça às bruxas a quem é diferente. Morrissey, que nunca falou abertamente da sua sexualidade (dizendo apenas que é atraído por alguns, muito poucos, seres humanos), admite que vivia estranhamente desinteressado do sexo, ao contrário dos seus amigos que só pensavam em tirar as cuecas às raparigas. A verdade é que não ajudou à sua discrição começar a idolatrar abertamente alguém ainda mais estranho e sexualmente ambíguo do que Bowie: os norte-americanos New York Dolls, que usavam não apenas roupas mas também nomes de mulher. Apesar de nenhum deles ser homossexual, assim foram tratados pela imprensa. É possível imaginar a força ou vontade de chocar que seria preciso para um adolescente tímido do ambiente industrial de Manchester venerar estas figuras, que até nas publicações musicais eram tratados como degenerados. Para os Dolls foi reavivado o slogan antes aplicado aos Stones: mas em vez de se aconselhar os pais a trancar as suas filhas, o conselho era agora dado em relação aos filhos rapazes. Morrissey criou mesmo o clube de fãs dos New York Dolls e escreveu cartas inflamadas às revistas musicais, acerca dos seus ídolos.
Enquanto esta transformação interior se dá, em termos estruturais tudo está igual. O martírio diário de St Mary’s só se agudiza e, em 1972, Morrissey põe a tocar, para o seu pai ouvir, “All The Young Dudes”, dos Mott the Hoople. O seu pai levanta-se com asco: “Oh, não não vou admitir isso”.
Aos 14 anos, pede a um amigo que lhe pinte uma risca loura no cabelo. “Instantaneamente, sou famoso, mas não se seguiram quaisquer prémios por confiança ou originalidade. Até aí invisível no sistema de desumanização de St Mary’s, apareço agora perante eles como um alvo congelado; um rapaz com uma faixa de cabelo pintado, pagando um preço mortal pela ousadia de tentar viver artisticamente. De alguma forma, um rapaz com cabelo pintado inventivamente metia nojo à nossa professora de arte. Que espécie de arte ensinava ela, afinal? A arte da não-expressão?”, descreve Morrissey. É desta época a descoberta da poesia, com a ultra-referência Oscar Wilde acima de tudo; e o vegetarianismo (Brian Ferry é retirado do radar emocional do rapaz por admitir que a sua comida preferida é veado).
O fim do período de escola marca a libertação do sistema. Os anos seguintes trazem a fertilidade do período de descoberta musical. Iggy Pop, Lou Reed e Patti Smith são a santíssima trindade para um rapaz que vai conseguindo dinheiro da mãe para comprar discos importados e ver todos os concertos que Manchester tem para oferecer (entre eles os Sex Pistols). Nesses anos, o jovem deambula, sobretudo. Fugindo do sistema escolar, não há hipótese de fugir a outro conjunto de regras: arranjar emprego ou receber subsídio de desemprego, o que obriga a procurar trabalho activamente. Anos mais tarde, em “Still Ill”, Morrissey cantaria: “No I never had a job, because, I never wanted one”. Mas isso não é exactamente verdade. Esteve várias vezes nos EUA, em visita a familiares, e estava decidido a arranjar dinheiro para lá voltar. Começou por uma loja de discos, projecto que não durou. Depois fez trabalho administrativo a catalogar documentos, mas foi despedido por usar uma t-shirt dos Ramones. Procurando fugir à proposta do centro de emprego de que ele fosse limpar canais do rio, vai a uma entrevista para trabalhar nos Correios: é considerado incapaz, física e psicologicamente, para o snob Royal Mail.Tenta de seguida a crítica musical para a revista Sounds, mas falha; segue-se um trabalho na moda, num gabinete de estilista, mas rapidamente perde o lugar. Chegou a passar algumas semanas na lavandaria do Hospital local, logo ele que odiava sangue. Lentamente, sem lugar no mundo, começar a afirmar-se a necessidade de expressar-se: “Quero cantar”, admite finalmente para si próprio.
Aos 17 anos, Morrissey vive na noite dos concertos, conhecendo alguns dos artistas (músicos mas não só). Vê os Clash (cujo barulho não o impressiona), os The Fall e os Buzzcocks. Sem qualquer perspectiva de futuro, decide-se a dar o salto. Responde a um anúncio colocado pelo guitarrista Billy Duffy para fazer uma banda. “Já não conseguia assistir aos outros a fazer coisas que eu poderia fazer muito melhor, por isso apresentei-me ao Billy como vocalista”, explica.
Seguem-se semanas e meses de trabalho em conjunto, os primeiros ensaios com instrumentos a sério, a descoberta desse novo mundo tão amado, desta feita como protagonista. Duffy já tinha alguma experiência e consegue mesmo marcar um concerto para a banda, na Universidade de Manchester. Com cinco músicas ensaiadas mas ainda sem nome, optam por uma solução de última hora: The Nosebleeds, banda de onde vinha a secção rítmica e que entretanto se havia dissolvido. É esta a primeira entrada na carreira musical de Steven Patrick Morrissey: vocalista dos Nosebleeds. Nessa noite, tudo ganha forma, tudo faz subitamente sentido, e depois disso já não é possível voltar atrás, aos trabalhos da treta, ao mundo enfadonho de tweed, à vida dos outros. Essa noite é um sucesso e, sobretudo, dá a Morrissey duas coisas sem preço: mostra-lhe que, efectivamente, sabe cantar e bem, em cima de um palco; e dá-lhe uma excitação nunca antes conhecida e impossível de igualar de outra forma.
No entanto, menos de uma semana depois dessa noite, as trevas voltam a ganhar. Billy Duffy é recrutado para os Theatre of Hate, a caminho de uma apresentação no todo-poderoso “Top of the pops”. Os Nosebleeds esfumam-se de um momento para o outro. Morrissey, depois de ter finalmente encontrado o seu rumo e tido um gostinho dessa viciante droga, fica novamente sozinho.
No meio do desespero e melancolia que se seguiu, uma luzinha ao fundo do túnel: Duffy dá-lhe o contacto de um jovem guitarrista de Manchester, que tem fama de ser talentoso e estará a tentar criar uma banda.
Esse rapaz chama-se Johnny Marr, e a segunda parte deste trabalho será dedicada a uma pequena banda independente que os dois jovens criariam.
Muito bom!
Muito bom !
Continua a valer a pena, e muito, ler a autobiografia. Não apenas pelo interesse da história mas porque está, de facto, escrita de forma magnífica, de grande nível literário. Creio que a tradução portuguesa sairá ainda antes do final do ano.
valeu ler o artigo e vale, com certeza, a pena ler a biografia. como o meu inglês é da mesma praia da do jorge jesus, e eu não quero perder nenhuma subtileza de linguagem de moz, espero pela autorização da tradução para português.
Parabéns, Tiago! Gostei mesmo de ler. Tenho a recente biografia do Morrissey, mas pergunto: achas que ainda vale a pena ler? ;-)