A expressão “Anno Bloomini” é do próprio, quando lhe perguntamos se nos próximos concertos vai tocar coisas das vidas passadas – Quinteto Tati ou em nome próprio. Mas não, está em anno bloomini, que é um espaço é um tempo. É agora, hoje, sempre hoje, um pouco amanhã. E é Lisboa, como é Coimbra, como é latinamerica ou Bornéu.
Bloom, o nome que assina o disco Tremble Like a Flower, é apelido de um alter ego do heterónimo. No corpo onde outrora habitava o vocalista de Belle Chase Hotel, reside hoje um inglês de 75 anos. Na entrevista, a voz é-nos familiar mas não é claro quem fala, o encarnado ou a encarnação. Mas conta-nos quem é este indivíduo, que de qualquer forma, é o autor das canções. Nicholas Bloom é «um inglês que nasceu em 1947, a 60 kms de Londres, em Southend By Sea, que teve uma história parecida com a dos super-heróis, os pais morreram num acidente de avioneta, eram muito ricos, e ele ficou a viver num grande hotel, nessa vila costeira, houve uma tia que tomou conta dele, mas basicamente ele sempre foi uma pessoa que nunca precisou de fazer nada, embora tenha estudado e tenha feito a sua vida profissional, mas o que ele fez sempre foi música, desde os anos 60, mas nunca editou, nunca gostou muito do ‘business’ da coisa. E numa ocasião encontrei o Nicholas Bloom num cafézinho em Buenos Aires e depois de uma longa conversa – depois de eu lhe explicar que andava um bocado sem saber o que fazer com a minha música, ele teve alguma compaixão com o meu drama, porque o meu problema era ter que viver, eu alimento-me através da música que faço, que é uma coisa bastante ‘naufrágil’ – e então, depois de uma conversa em que passámos por Borges e Pessoa, surgiu a ideia. Ele estava com vontade de começar a publicar as coisas que fez mas não lhe apetecia estar a protagonizar isso; eu estava com problemas sobre como é que ia levar a minha música, então estive a escolher algumas músicas dele, a fazer alguns arranjos, sempre sob a supervisão do Nicholas, e assim lanço este disco, o primeiro de muitos, inspirado na obra do Nicholas Bloom, do qual eu sou o avatar de carne e osso».
Mais à frente na conversa, JP Simões talvez tenha admitido que tudo isto é uma ficção que inventou para justificar a criação do novo disco, mas só acredita quem quiser. A verdade é que no resto da conversa, JP falou dos discos de JP na primeira pessoa, e aí baralhou-nos um pouco. «Eu com o meu síndrome de Peter Pan, que teima em persistir, tenho sempre a sensação que estou sempre a começar. E na verdade, estou sempre a começar, porque cada vez que faço um disco novo, tento fazer um bocado em contraponto com o que tenho feito antes. O que aconteceu agora foi que percebi que esses contrapontos, dos meus trabalhos anteriores a solo, não eram tão contrapontísticos como isso, senti uma certa homogeneidade no trabalho, na forma de escrever, na própria neurose que estava nas canções, na relação serviçal da música em relação às letras ou histórias para contar, e o que aconteceu aqui foi dar um salto para fora desse esquema e perspectivar, ou procurar outra música onde pudesse reiniciar o meu processo, onde pudesse voltar a ser o songwritter adolescente que tenho tentado ser desde sempre e vou continuar a ser».
Pode então concluir-se que Tremble Like a Flower é filho de uma nova forma de fazer as coisas. «A guitarra para mim sempre foi um espaço de liberdade e invenção. E neste disco o que me soube bem foi ter mudado as escalas e ter mudado as afinações e ter-me livrado um bocado dos armários cheios de songbooks, todos a funcionar para a afinação regular. De repente, senti que tinha acabado de inventar outro espaço e o que interessa, no fundo, é o som que se vai fazer. Pouco importa de onde vem, seja da disciplina ou da intuição. Eu estava a precisar de espaços mais serenos para respirar, ou então de espaços mais sérios para reflectir, fazer uma reavaliação. Precisava da minha música de forma a que ela fosse uma terapia para mim. Procurei exorcizar de uma forma mais racional todos os sentimentos de alguma tristeza, e também as repetições dos ciclos da vida, repetições dos mesmos erros, tentei fazer uma música onde pudesse parar com isso, fazer as coisas desaguar nalgum lado, então neste caso foram desaguar não só ao delta do Mississippi como também às matas virgens da Amazónia ou da Ásia».
Quando fala em Amazónia, JP Simões não está a ficcionar, tem o bilhete de avião que o comprova e diz que essa estadia na América Latina foi visualmente inspiradora: «Enquanto estive em Buenos Aires não consegui trabalhar, andei lá numa boémia desgarrada. O que aconteceu de útil em relação a este trabalho aí, foi essencialmente em Iguaçu, nos passeios pelas zonas mais selvagens, andar pelas cataratas. Nesta música que eu andava a tentar inventar e inventar-me com ela, havia muita coisa telúrica, há – pelo menos na parte da guitarra base – muita evocação da natureza e muitas das paisagens que eu não sabia como identificar e fui encontrá-las nessa mata em Iguaçu, nesse lugar húmido e selvagem e fértil. E de algum modo acho que aquilo me ajudou a consolidar uma série de ideias que eu achava exóticas – trabalhando num apartamento num 4º andar no centro de uma cidade e sonhando com paisagens de matas virgens extraterrenas – ali fui encontrar, não só isso, mas também aquela sensação que às vezes se recupera nas viagens, que é “eu não pertenço só a um sítio, pertenço a muitos sítios”. Senti que o mundo pode ser o nosso baú de material artístico e isso também me fez sentir que estava no caminho certo».
Das matas de Iguaçu para Lisboa, o resto do disco foi feito numa parceria altamente profícua com Miguel Nicolau, dos Memória de Peixe, e o resultado mostra mais uma vez que JP Simões, seja com o nome próprio ou espalhado em heteronímia, é um autor fundamental na música portuguesa dos nossos dias.