Onze anos depois de Tales For The Realm Of The Queen Of Pentacles e nove após o temático Lover, Beloved: Songs from an Evening with Carson McCullers, Vega traz-nos uma reafirmação de múltiplos talentos, num disco que traduz muito bem as preocupações do nosso tempo. Em síntese, ameaças à democracia, amor e guerra na voz de uma das grandes trovadoras da modernidade.
Escrever sobre Suzanne Vega é, de forma invariável, revisitar um percurso recheado de joias melódicas, letras e sonoridades imperdíveis. Cada novo álbum, e este é já o 10.º de estúdio (incluindo, em 2016, Lover, Beloved: Songs from an Evening with Carson McCullers, a partir da peça “Carson McCullers Talks About Love”, de 2011, que incidia sobre a sua vida), devolve-nos à estreia de 1985, com o disco que tinha por título o seu nome, ou a 1987, com Solitude Standing. E lá vêm as memórias tão vívidas que poderiam ser de ouvir ainda ontem na rádio temas como “Marlene on the Wall”, “Small Blue Thing”, “Knight Moves”, “Solitude Standing”, “Luka”, “Tom’s Diner” ou “Gypsy”. Mas sobre tudo isto e acerca do disco Tales For The Realm Of The Queen Of Pentacles, no primeiro caso antecedendo uma passagem da cantautora por Portugal, já aqui e ainda aqui escreveu com mestria o Carlos Lopes.
Ao longo do tempo, Suzanne Vega nunca deixou de lado as temáticas incómodas, como os maus-tratos a crianças de que “Luka” é um exemplo. Importa, agora, ouvir com atenção um trabalho sobre o qual a artista indicou, em comunicado divulgado à imprensa, que “cada música decorre numa atmosfera de luta: para sobreviver; para falar; para dominar; para vencer; para escapar; para ajudar outra pessoa; ou, apenas, para viver”. E é bem disso que, de facto, se trata. Flying With Angels arranca logo com um elogio à liberdade de expressão e à defesa da democracia bem patente em “Speakers’ Corner”, alusão ao famoso espaço em Hyde Park, Londres, onde cada qual pode erguer a voz para manifestar opinião sobre qualquer tema. Com um aviso bem evidente face aos tempos tenebrosos que se vivem em função do recrudescimento dos autoritarismos: “I guess we better use it now/before we find it gone”, canta.
“Flying With Angels”, tema que dá nome ao álbum no qual é vincada a omnipresença de Gerry Leonard, guitarrista há muito tempo ao lado da cantora e aqui também produtor, traça marcas melancólicas e sombrias. “Witch” conduz-nos por voltas e reviravoltas rítmicas, num estilo pouco habitual na cantora, e de novo a deixar pistas para as preocupações da atualidade: “We’re living in a state of a permanent emergency/Suddenly speech is a show of absurdity.”. “Chambermaid” recria “I Want You”, do álbum Blonde On Blonde, que Bob Dylan, uma das principais influências criativas da cantora, editou em 1966. Com “Love Thief”, canção de amor que remete para a década de 70, em certo sentido recuperam-se ambientes próprios de Barry White, num R&B conjugado com funk. “Lucinda” é uma homenagem a Lucinda Williams, cantora de rock, folk e country que já venceu três prémios Grammy.
Em tons de folk, “Last Train From Mariupol” fala da invasão russa à Ucrânia e das trágicas consequências para os seres humanos, enquanto “Alley” é uma espécie de balada que nos convoca a todos para sonharmos acordados. “Rats”, que foi beber na inspiração a Ramones e Fontaines DC e já tivera divulgação em 2024, é uma abordagem à praga que tem afetado Nova Iorque a partir do sistema de esgotos, tendo começado numa conversa entre Vega e Jimmy Hogarth, produtor de Beauty & Crime, o seu álbum de 2007, sobre quem avistara o maior roedor na referida cidade. E o disco fecha com “Galway”, um belo miniconto com requintes irlandeses sob a forma de canção, bem ao estilo da intérprete.
Decorreram quatro décadas desde que a (ou)vimos pela primeira vez. Foi possível acolhê-la por cá em diferentes oportunidades. Nunca parou, não deixou de se dedicar à sua música, gravando discos e partindo em digressões, além de desenvolver projetos paralelos, como o de ser narradora na ópera “Einstein On The Beach”, composta por Philip Glass e Robert Wilson. Mas esses 40 anos em nada a prejudicam. Não há pó, teias de aranha, bolor ou qualquer vestígio de bafio nas suas apresentações – o tempo não passou pela voz, nem pelo talento de Suzanne Nadine Vega. E Flying With Angels é disso um testemunho bem eloquente.