A mais recente edição do Super Bock em Stock começou morna mas foi aquecendo à medida que a noite foi prosseguindo
A edição do Super Bock em Stock de 2019 voltou a juntar artistas e público na Avenida da Liberdade e nas suas habituais paralelas e transversais, ora mais acima, ora mais abaixo. Habituados às noites frias de novembro, os festivaleiros andaram apressados de um lado para o outro, sempre em busca dos sons das suas preferências. Uns por lazer, outros por obrigação profissional. E assim, juntando ambas as particularidades, o Altamont fez-se à estrada (ou melhor, à Avenida e seus arredores) e também por lá andou a ouvir, escrever e fotografar, como aliás vem sendo hábito antigo. Onde há música, costumamos estar.
Tendo em conta o padrão de gostos que vão ajudando a definir o Altamont, cedo percebemos que o primeiro dia não seria o de nossa eleição. Algum desequilíbrio entre as duas datas, o que é perfeitamente natural. O de hoje, sábado, tem outros trunfos, artistas que mais quadram as nossas medidas auditivas. Mas não nos antecipemos. Ontem, também gostámos do que ouvimos, e tudo se resume ao que a seguir se lê. Ora siga-nos lá, que verá que não se vai arrepender. Então, foi mais ou menos assim.
A noite começou no Cinema São Jorge com o concerto de Niki Moss, projeto musical do multi-instrumentista Miguel Vilhena. Ao vivo, o quarteto de bateria, baixo, guitarra e teclados prova-se uma máquina mais feroz do que o disco Gooey nos sugeria, com pirotecnia guitarrística e uma obsessão pelo pedal wah-wah que muitos especialistas não considerariam saudável em 2019 mas, surpresa surpresa, acabámos por assistir a um concerto caloroso, ideal para começar de leve o primeiro dia do festival.
Um bocado depois, à mesma latitude, Luís Severo, que nesta altura do campeonato dispensa qualquer tipo de apresentações, emergiu com o seu jeito de rapaz tímido no Teatro Tivoli, inicialmente apenas com a sua guitarra elétrica em punho. Logo à partida fomos recebidos com “Planície (Tudo Igual)” e tornou-se imediatamente evidente o quanto esta canção tão recente já soa a clássico. Depois de mais umas quantas músicas tocadas a solo na guitarra, os músicos convidados entraram em palco, um trio de harpa, violoncelo e contrabaixo. Foi impossível não nos deixarmos comover com a versão de “Rapaz” tocada apenas com acompanhamento de contrabaixo ou a versão de “Acácia” que contou com bonitos floreados de harpa e uma melodia de violoncelo que realçou a carga emocional da canção. Estes arranjos tornaram exóticas canções que nesta altura do campeonato já nos são bastante familiares. Também tivemos direito a versões ao piano elétrico de “Cara d’Anjo” e “Domingo”, que se tornou muito mais dramática no processo. Finalmente, uma bonita homenagem a José Mário Branco, que nos abandonou no dia 19 de novembro, sob a forma de “ As Canseiras Desta Vida” entregue com a fadiga que a ocasião pedia. A comunhão entre um grande músico e um monumento cujo desaparecimento deixou o país mais deserto.
Mais a sul, no Palácio da Independência, os Dream People faziam o tempo abrandar. E não necessariamente da melhor maneira. O som do grupo lisboeta podia ser descrito como “como os My Morning Jacket soam a quem não conhece My Morning Jacket”. Não que haja nada de intrinsecamente errado com isso mas à hora em que tocaram, o concerto soube mais a letargia do que a encantamento o que é uma pena pois, em termos musicais, estivemos perante um grupo competente que talvez precise de dar mais uns concertos para encontrar alguma identidade em palco.
Michael Kiwanuka tinha mais de meio Coliseu para o ver e ouvir. Isso de início, porque a sensação que nos deu é que foi enchendo aos poucos até ficar uma “boa casa”. O estilo e a voz são conhecidas, mas sabe sempre bem reconhecer na gente nova a presença dos grandes, como Van Morrison, por exemplo, sobretudo na sua vertente mais oldie da soul, assim como na forma de cantar algo arrastada. E quando assim é, tudo bem. Depois, as boas canções fazem o resto. A boa voz, os coros que tresandam agradavelmente a África e a trópicos distantes, tudo tem um brilho especial. Apetece ir cantando. São temas que levamos connosco, que se tornam próximos e amigos. “I’m a black man in a white world” convida à festa e foi isso que aconteceu. O Coliseu inteiro dançou até pingar de suor. Afinal, o outono invernal tinha ficado à porta. O calor de Kiwanuka alterou a lógica das estações. Ainda bem. Foi o “Hero” da noite.
Já sabíamos que Nilüfer Yanya é uma menina atrevida e de nariz empinado. Mas tímida também, qual Lolita dos palcos mais alternativos. As memórias de anteriores concertos garantiam essa certeza, e o concerto de ontem não defraudou as expectativas. Por vezes, é bom não ter surpresas. A postura firme não engana, e uma mulher de guitarra na mão é sempre uma visão prazerosa. Quatro músicos em palco. Uma voz e uma guitarra, viola baixo, teclas, bateria e saxofone (que delícia ouvir os sopros desse instrumento em temas tão “à margem” como os que faz a norte americana). O resto são canções bem definidas, nem sempre óbvias, mas certeiras quanto baste para nos agradar bastante. O que encontramos em Nilüfer Yanya é uma grande mistura de coisas boas e em doses certas. O resultado é um cozinhado sonoro com sabor a indie-rock (sim, ainda está vivo e recomenda-se), não descurando bonitas piscadelas de olho à pop mais adulta e honesta. Mulher de accent bem atravessado, Nilüfer Yanya teve ontem à sua frente uma sala (Manuel de Oliveira, São Jorge) totalmente lotada, o que é muito bom num mundo mais interessado em cantarolar do que em ouvir. Ainda há esperança, portanto. Foi um prazer, Yanya! Para nós, o título de “miss universo” está bem entregue.
Texto : Miguel Moura e Carlos Lopes || Fotografia: Inês Silva