O Super Bock em Stock fecha a edição de 2018 com uma mão cheia de concertos ímpares e memoráveis.
Chegamos ao segundo dia do Super Bock em Stock onde esperamos presenciar a magia lírica de Tim Bernardes, a estreia do rapper irlandês Rejjie Snow em terras lusas, o aguardado regresso dos Jungle a Portugal e, nos interstícios, uma amostra da melhor música nacional.
Na Sala Santa Casa, Éme cantava as suas narrativas urbanas em formato banda, com Moxila na flauta e ukulele e Lourenço Crespo nos teclados. Canções como “Roma-Sé” e “Zequinha” demonstram talvez uma dependência em relação às suas influências mas aqui e ali vislumbra-se o potencial do músico quando finalmente se distancia delas. Não se pode, no entanto, acusar Éme de não saber dar um bom concerto e os arranjos criativos foram uma lufada de ar fresco para as pessoas habituadas aos seus concertos a solo.
Subindo um bocado a Avenida da Liberdade, entramos no Tivoli pouco antes de Tim Bernardes começar o seu concerto. No Verão esgotou duas noites na ZDB, provando logo que já existe por cá um certo hype em torno do músico brasileiro, líder dos Terno. Ao ver esta noite o Teatro Tivoli cheio, com gente que sabe as letras de cor, confirma que esse culto é justificado. Em disco está com banda completa, com arranjos sumptuosos. Ao vivo, estava sozinho em palco, alternando entre a guitarra eléctrica e o piano de cauda. Derradeiro desafio, não só às canções mas também ao intérprete. E Tim Bernardes ganhou logo à primeira canção que tocou. Uma voz ora forte ora delicada, mas sempre calorosa; composições exímias cheias de dinâmicas; uma simpatia honesta e humor gentil entre músicas (falar a mesma língua ajuda bastante) – receita mais que suficiente para um concerto memorável. Durante uma hora e dez minutos, foi como se o público estivesse todo em cima do palco, ao lado de Tim Bernardes, enquanto nos canta ao ouvido e nos faz sentir confortáveis. O repertório foi maioritariamente do disco a solo, mas também houve espaço para ouvir O Terno, bem como algumas versões, por exemplo de Black Sabbath, Gilberto Gil ou Jards Macalé – nomes que resumem bem as notas que correm no sangue de Tim – o peso de uma tradição riquíssima do país onde nasceu, acompanhada de boas doses de rock. No final, ovação de pé no Tivoli! Tim Bernardes é, sem dúvida, um nome a que devemos estar atentos no futuro porque tem todo o potencial para ser a coisa mais interessante do Brasil indie desde os Los Hermanos.

Pouco tempo depois, o Coliseu flutuava ao som da dream pop dos Still Corners, duo londrino que, com o seu ainda fresco Slow Air, impregnaram o ar com melodias vaporosas de teclados e guitarra elétrica. A combinação da voz de Tessa Murray com a guitarra de Greg Hughes talvez justifique algumas comparações a Beach House, mas o grupo troca a letargia e a atmosfera pesada por escalas maiores e arranjos mais ligeiros evidenciados por canções como “Black Lagoon” que abriu o concerto ou “The Trip” do seu segundo disco Strange Pleasures.
Entretanto, no Palácio da Independência, dançava-se o tango. David Bruno, também conhecido por dB, dava-nos um pouco do seu hip-hop azeiteiro que, qual poema épico, exalta as virtudes dos subúrbios portugueses. Com Marco Duarte na guitarra, o produtor de Vila Nova de Gaia tocou O Último Tango em Mafamude lançado no início deste ano, acabando o concerto com a sua clássica “#150mL”. Seja como cabecilha do seu excelente Conjunto Corona ou a solo, David Bruno domina o género em que se insere e é com segurança que podemos dizer que confiaremos na sua assinatura enquanto o Gaiense estiver aqui a produzir hip-hop.
Eram 22:40 quando o Tivoli recebeu a norte americana Holly Miranda. O palco estava semelhante ao de Tim, piano de cauda e guitarra eléctrica, preparando-nos para mais um momento de intimismo, o Tivoli a funcionar como uma espécie de bolha onda íamos para respirar num festival que é, em regra geral, uma azáfama. E se Tim Bernardes disfarçou dinamicamente a ausência de mais instrumentos, na música de Holly Miranda essa falta sente-se mais. Em disco (e já tem três de originais), as composições outonais saem bastante reforçadas pelo som de banda. A solo à guitarra, ou ao piano, a coisa fica mais morna. E foi assim o concerto, nunca chegou a aquecer confortavelmente. Holly tem um vozeirão incrível, com uma amplitude enorme, faz estremecer quando grita e faz chorar quando sussurra; a postura em palco também é irrepreensível, de guitarra em riste tem momentos que nos evocam Jeff Buckley e, ao piano, chega a arrepiar pela doçura melancólica. Mas neste concerto, deu a sensação que faltava qualquer coisa. Talvez a escolha da sala, que tinha menos de metade da lotação… num espaço mais pequeno, em que estivéssemos todos mais perto uns dos outros, aí decerto seria um concerto bem mais marcante.

Rumo ao Capitólio ninguém estava à espera da surpresa desconcertante que tivemos no concerto de Rejjie Snow. Depois do DJ tocar “Hello” sem que o rapper aparecesse em palco, esta deu lugar a um DJ set de trap que se prolongou durante quinze minutos nos quais a agitação de um público confuso era palpável. Quando ouvimos o beat familiar de “Rainbows” e, com o rapper finalmente a emergir no palco pudemos todos suspirar de alívio. Mas os problemas não acabaram aí. A voz de Rejjie não se sobrepunha às camadas de samples e linhas de baixo dos seus beats e foi só meia hora depois do concerto começar que tentou finalmente remediar a situação.
Talvez para compensar o cancelamento abrupto do concerto de Dream Wife o concerto do irlandês estendeu-se até hora e meia o que não funcionou a seu favor. O estilo de hip-hop de Rejjie Snow dispensa a intensidade dos refrões normalmente associados ao género, por sonoridades com mais nuance, com uma afinidade maior pelo R&B. Apesar dos dois moshes aquando de “Blakkst Skn” e “Charlie Brown” uma hora e meia de grooves jazzísticos acaba por ser excessivo. Sinal talvez de alguma verdura da parte do rapper irlandês.
Para fechar a noite de concertos no São Jorge, os californianos The Saxophones, banda composta por Alexi Erenkov e Alison Alderdice, marido e mulher, que editaram o álbum de estreia este ano. E o disco é um álbum perfeito para ouvir em casa, com um copo de vinho em frente à lareira num dia de chuva. Arranjos clássicos, canções de uma simplicidade aconchegante, ritmos lânguidos e vozes quase sussurradas. Um bom disco, sem dúvida. Mas não um concerto para fim de noite num espaço tão grande como a sala principal do São Jorge. Em palco, Alexi na guitarra, Alison na bateria, um amigo baixista e uma caixa de samples, garantiram que não se perdeu quase nada, na transposição do disco para o concerto. Mas perto da meia noite, num festival, não era bem isto que o público procurava. Embora a sala estivesse praticamente esgotada quando a banda começou a tocar, só nas primeiras cinco músicas, foi saindo gente, às dezenas de cada vez… decerto queriam festa, e quem lhes ofereceria isso eram os Jungle, prestes a começar no Coliseu. Ainda assim, vale a pena ouvir o disco dos Saxophones (e já agora, esperar que regressem, mas em nome próprio e a uma sala mais adequada).
De volta ao Coliseu, os Jungle continuavam a festa que começaram na última edição do Paredes de Coura. Mas era impossível assistir ao concerto sem um ligeiro sentimento de déjà vu. Não houve nada de intrinsecamente errado com o concerto. As canções estavam lá, tocadas com o mesmo fulgor e competência a que os londrinos nos habituaram. Mas já vimos esta festa antes. Uma breve comparação com o alinhamento de Paredes mostra-nos que os concertos foram virtualmente iguais, com a adição de apenas mais uma música do último álbum, For Ever, lançado em Setembro. O entusiasmo do público que ocupou cada centímetro quadrado do Coliseu ajudou a elevar a experiência tornando o concerto num verdadeiro evento.
É desconcertante ver o último dia do Super Bock em Stock a ser prejudicado por problemas técnicos e concertos anti-climáticos mas o saldo é decididamente positivo. Com uma escolha atenta e eclética de artistas, esperamos ver cartazes deste calibre durante longos e bons anos.
Texto: Miguel Moura com Duarte Pinto Coelho || Fotografia: Inês Silva