É sempre bom voltar a ouvir canções do maestro António Carlos Jobim. A eternidade da sua música apresentou-se, ontem, nas vozes de Stacey Kent e Danilo Caymmi.
Voltámos ao Festival Jardins do Marquês, que é algo que fazemos sempre com muito gosto. Dos sete dias do evento, o Altamont estará em cinco, garantidamente. Na sua quarta edição, o Festival da vila de Oeiras apresenta um cartaz de peso, bem variado e de enorme qualidade. Basta ir estando atento ao que aqui vamos escrevendo, e verá que estamos certos naquilo que afirmamos. A tarde / noite de ontem foi uma prova disso, aliás. Juntar, num mesmo dia, Jazz Poetry Ensemble, curioso acontecimento de poesia dita por Nicolau Santos (Reinaldo Ferreira, Jorge de Sena, Manuel António Pina, Vasco Graça Moura, Sophia, poemas do próprio Nicolau) e de música dos grandes do Jazz (mas não só) tocada pela quarteto de Manuel Lourenço, somando ainda a isto um nome da MPB e do samba (Joyce Cândido) aos cabeças de cartaz Stacey Kent e Danilo Caymmi para apresentarem o concerto Um Tom Sobre Jobim é obra, convenhamos!
Foi mais ou menos assim que tudo começou: “Sob o signo do jazz, milhões de cigarros a arder, milhões de copos de whisky” – tudo ao cair da tarde, em Oeiras e não em Roma, como diz o poema, na voz de Nicolau Santos. O projeto Jazz Poetry Ensemble já existe desde 2006 e prossegue, geralmente em salas pequenas, desta vez aberto às vastas plateias do Festival Jardins do Marquês. Piano, contrabaixo, bateria e saxofone entoando clássicos (e não clássicos), mas que soaram a coisa muito boa. E por cima, a palavra dita, versos de muitos poemas (e não poemas) e música, muita música para começar a virar a página da tarde para a noite que chegava. Que maravilha ouvir “Blue in Green”, do enorme Bill Evans. Ouvir Joe Henderson, Jobim (a noite era dele, sobretudo dele, de facto). Mas também se ouviu blues e tango com o passar do tempo. E foi mais ou menos isto, como dizíamos, um doce e suave turbilhão de sons e cores dos hemisférios do mundo, da música que o mundo do norte e do sul soube produzir para quem a pudesse apreciar.
Depois, no outro palco do recinto (Nortada), uma primeira visita brasileira, Joyce Cândido, com canções suas e de bons craques do samba, como Martinho da Vila, por exemplo. O bom e velho samba novo não tem tempo nem lugar. É de todos, dá-se à democracia dos pés, das pernas, dos braços no ar, ondulando versos e ritmos que requebram tristezas e dores, mesmo quando são tristes e sofridos. O “mundo roda e nunca vai deter” o samba. “É passarinheiro e só quer passarinhar”. Sempre. Violão, acordeão, pandeiro e voz. Basta esse tanto para se fazer uma roda de samba, para não se dar pelo tempo e pela noite que já tinha chegado. E canções do outro mundo para nos fazer cantar, como “Reconvexo”, do mestre dos mestres Caetano. “Eu sou um perto norte-americano forte / Com um brinco de ouro na orelha”. E Chico, que não “deixa a menina sambar em paz”, e que também se fez conhecer com “Minha História (Gesubambino)”, na versão portuguesa. Foi breve, mas agradável, o concerto da moça Joyce Cândido que foi trazida a Portugal, há já alguns anos, pelas mãos de Pierre Aderne, o homem-músico que mais uniu em Lisboa tantas e tantas geografias sonoras de todas as partes do mundo.

Depois, chegou a hora mais desejada. Stacey Kent e Danilo Caymmi surgiram no palco Jardins do Marquês um pouco antes das 22 horas. A cantora norte americana estava verdadeiramente feliz por cantar Jobim em português, mas também em inglês e até em francês. Danilo, por sua vez, mostrou-se igualmente entusiasmado por ter ao seu lado uma artista com o gabarito internacional de Stacey. Ela diz que a sua vida mudou quando há quase década e meia ouviu o disco de Stan Getz com João Gilberto (1964), e a partir desse instante a paixão pela obra do maestro soberano não parou de crescer. Danilo, músico que trabalhou diretamente com Jobim durante largo tempo, encontrou na voz de Stacey Kent a perceira ideal para que ambos voltassem a dar corpo e espessura às eternas canções que o mundo inteiro conhece e sabe de cor. Por isso, todo o concerto foi uma celebração de clássicos, de momentos ternos de partilha de sentimentos e alegrias que a nostalgia tantas vezes traz à flor da pele. A voz grave de Danilo e a voz serena de Kent fizeram o resto, acompanhadas por cinco músicos em palco, num perfeito ambiente bossa-novista de máxima elegância e requinte. “Chega de Saudade”, “Água de Beber”, “Ela é Carioca”, “Estrada do Sol”, “Luíza” (feita pensando nos cabelos louros de Vera Fischer que, entretanto, mudou a cor), “Tema de Amor de Gabriela” (feito para o filme de Bruno Barreto, protagonizado pela eterna Gabriela Sónia Braga e pelo italiano Marcello Mastroianni), “Samba do Avião”, “Quiet Nights of Quiet Stars”, “Retrato em Branco e Preto (instrumental, apenas), “Insensatez” (em inglês), “Dindi (também em inglês), “A Felicidade”, “Águas de Março” (em francês) e “Se Todos Fossem Iguais a Você” foram alguns dos temas cantados por quem estava em palco, mas também por uma larga fatia de quem estava nas plateias do recinto.
Foi, como se percebe, uma noite de canções, todas elas nascidas do génio de António Carlos Jobim, passados quase trinta anos do seu falecimento. Uma noite em grande, pois então. Quando terminou o concerto, o vento começou a revelar-se e havia algumas nuvens no céu, mas éramos capazes de jurar que a noite estava completamente estrelada. Há coisas que não se explicam, e que apenas se sentem. Mas isso é algo que todos sabemos, não é verdade? Salve António Carlos Jobim e todo o seu extenso legado!