A banda e o disco estouraram no Brasil de forma tão alardeante quanto inimaginável. Ninguém poderia supor o impacto que teriam, ao ponto da editora que os gravou ter de derreter milhares e milhares de discos que tinha em stock para conseguir a matéria prima (vinil) necessária para atender aos pedidos e encomendas do público. Tornaram-se enormes e são uma banda de culto até hoje.
Com a ditadura militar em pleno andamento, os Secos & Molhados arriscaram as suas pensantes cabeças (e sim, já iremos à capa do álbum, lá mais para o final do artigo) quando avançaram com a arrojada proposta que todos conhecemos há muito. No entanto, quando o disco saiu em 1973 e as televisões começaram a mostrar de forma algo receosa as atuações da banda, o espanto generalizou-se e atravessou a mente do povo brasileiro mais dado às artes, e o sucesso foi imediato. O Brasil parecia não estar preparado para a poesia dos temas, para a beleza singela das melodias, mas sobretudo para encarar (e perceber) aquelas figuras esguias e insinuosas que rebolavam nos palcos e nos retângulos da tv. O que fazer perante coisa tão inusitada? A resposta foi ir na onda (meio hippie, meio misógina, meio spooky) e deixar-se contaminar pela proposta artística de enorme qualidade que tinham pela frente. E assim, de entre todos os membros da banda, sobressaiu um homem com voz de castrati e corpo de lagarto. Com as caras pintadas, os Secos & Molhados coloriram o Brasil de outra maneira com os tons pretos e brancos das suas pinturas faciais, destacando-se, mesmo assim, dos tons igualmente pretos e brancos da repressão política e militar. O resto é história, e a história pode ser contada em breves linhas.
Os Secos e Molhados eram João Ricardo, um rapaz português de Arcozelo que muito cedo foi viver com os seus pais para o Brasil, Gerson Conrad, Ney Matogrosso e ainda Marcelo Frias, que embora tenha tocado bateria no disco e tenha a sua cabeça na capa do LP, não mostrou mais vontade de pertencer à banda. Para além dos nomes mencionados, o disco foi gravado com o empenho coletivo de outros músicos, dos quais se destacam Zé Rodrix e Willy Verdaguer. E se a parte melódica é um deleite para qualquer ouvido habituado a sons de qualidade, Secos & Molhados (o disco) também deve ser muito valorizado pelas letras das suas composições. Os textos mostram uma poética muito adulta, e como se não bastassem os preciosos versos de João Ricardo, há ainda poemas de João Apolinário (pai de João Ricardo, poeta e jornalista português), Solano Trindade, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes. Uma constelação de feras, como se pode facilmente perceber.
O disco abre com a soberba “Sangue Latino”, hino eterno dos que trilham “caminhos tortos”, canção que arrepia qualquer um que a ouça com um mínimo de atenção, derivando rapidamente para o exuberante e roqueiro “O Vira”, sucesso instantâneo com claro sabor a Portugal. Depois, a lânguida “O Patrão Nosso de Cada Dia” dá o tom dormente de algumas das composições de Secos & Molhados. No entanto, a sua beleza é devastadora, vem de dentro, é verdadeira, comove. A mesma dormência já não se poderá encontrar em “Amor” e “Primavera nos Dentes”. A primeira tem um groove fortíssimo, dançante, hipnótico, enquanto a segunda se refugia no jazz, no rock e em algum experimentalismo muito bem doseado, para não descambar em qualquer outra coisa que o disco dificilmente suportaria. Assim se preenche a primeira metade da deliciosa bolacha negra. A segunda, por sua parte, abre com uma canção hit, a magnífica “Assim Assado”, bem puxada ao rock e às estridências das guitarras, em que “aparece o Guarda Belo”, conhecida personagem da banda desenhada Top Cat, de Hanna Barbera, mas que na canção parece ganhar outros sentidos bem mais políticos do que lúdicos. A “Mulher Barriguda” acelera o espírito roqueiro do álbum, embora se afrouxe o ritmo nas seguintes “El Rey”, tema muito curto, não chegando ao minuto de duração, abrindo caminho para a eterna “Rosa de Hiroshima”, que chega a doer de tão bela, pungente, “sem cor sem perfume / sem rosa sem nada” do muito saudoso poeta Vinícius de Moraes. Depois de um poema sobre uma certa ideia de fim de mundo, de fim da humanidade, entra bem “Prece Cósmica” em jeito mais ritmado, embora sem picos de exuberância dignos de registo. No entanto, e como sempre, a beleza é característica constante de todas as treze canções do álbum, ficando para o fim as derradeiras “Rondó do Capitão”, tema que teve um enorme impacto nas crianças da época, “As Andorinhas” e “Fala”, deliciosa e perfeita maneira de encerrar a obra de arte que é Secos & Molhados. É uma canção simples, com uma letra simples, e que simplesmente nos leva pelos ares dos seus “la la la la la la la la la” ondeantes e mágicos.
O primeiro disco dos Secos & Molhados é um exercício artístico ímpar no universo da música popular brasileira. A fusão de estilos (rock, rock progressivo, rockabilly, baião, vira, jazz, folk, glam, pop e psicadelismo, blues, apenas para mencionar os mais evidentes) e o impacto visual da banda (é bom não esquecer que os americanos Kiss os copiaram descaradamente, embora apenas nas pinturas dos rostos, até porque não tiveram nunca capacidade para se aproximarem musicalmente dos luso-brasileiros) fizeram milagres no ano de 1973, deixando um vasto rasto artístico que perdura até hoje. O álbum faz parte do lote dos melhores discos de música brasileira de todos os tempos, e a curiosa capa (sim, é agora que falaremos dela) é considerada a mais irónica de sempre do país irmão. A fotografia foi tirada por António Carlos Rodrigues, que obrigou os quatro músicos a ficarem sentados por debaixo de uma mesa durante largas horas da madrugada, apenas com as suas cabeças visíveis expostas em bandejas, um pouco à maneira da decapitação de João Baptista. Por cima da dita mesa, uma simples toalha, e nela pão, cebolas, linguiça, garrafas de vinho, grão de feijão e bolachas de água e sal. Um toque delicioso de surrealismo com pitadas de antropofagismo? Talvez, mas ela é apenas (como se isso fosse pouco) a porta de entrada para um mundo sonoro que permanece bem vivo até hoje.