Os Russian Circles honraram Lisboa com uma experiência imersiva dos translúcidos mares do post-rock da qual nunca queremos voltar à tona.
Nestes anos a escrever sobre música tive a sorte de descobrir, pelo meio em que ainda hoje escrevo isto, o meu parceiro profissional, o meu fotógrafo de serviço. Conhecemo-nos por intervenção do álcool na veia mais comunicadora do meu sistema, durante um concerto em que já éramos uma dupla sem ainda o sabermos. A partir daí tive sempre companhia para ver as bandas que nunca ninguém queria ver comigo e começámos aí a desbravar territórios musicais incertos. Mas ainda estávamos no início e faltava qualquer coisa: a promotora que mais nos realizava musicalmente ainda não nos acreditava (o suficiente) e mais, persistia em trazer os nossos grupos favoritos à cidade-mãe da mesma, a 3h30 de distância da nossa. Costumávamos sonhar, às vezes mais convictos, outras vezes mais consumidos pela distância: “Vamos formar a ‘nossa’ Amplificasom em Lisboa”. Mas a verdade é que, mesmo sendo do Porto, eles não se esquecem de Lisboa, e graças às suas convicções, continuam a alimentar este nicho que anseia, sempre de água na boca, pela próxima suculenta data.
Mas porquê a longa introdução? Porque agora o meu amigo fotógrafo está em Inglaterra, e porque depois de três ou quatro concertos de Russian Circles, ontem foi a primeira vez em que fui a escrever sobre eles. E eu tinha tanta coisa para dizer.
Sexta-feira, dia 10 de Março, noite marcada e expectada até à sua concretização. A introduzir, a banda que tem acompanhado os Russian Circles nos seus últimos espectáculos: Cloakroom, também eles norte-americanos, também eles oriundos do espectro mais negro do rock, mas criados no fértil terreno do shoegaze e do pós-hardcore. Infelizmente, e sem querer tornar isto demasiado pessoal, fui assolada por uma enxaqueca nas horas prévias à do evento, o que me levou a ter de abdicar tanto dos Cloakroom, como da banda surpresa (que enquanto escrevia este texto descobri tratar-se de Putan Club, uma dupla italiano-francesa de avant-gard que me faz arrepender ainda mais de não ter tomado um Brufen antes de sair de casa) em prol de uma possibilidade de conseguir sobreviver durante a uma hora e meia de concerto de Russian Circles. Qual o meu espanto quando me apercebi que todos esses sentimentos e sensações – que me foram adjudicados durante esse mesmo concerto – prevaleciam sobre essa e sobre as outras dores. Uma espécie de cura efémera e inexplicável.
Os Russian Circles não são apenas um power trio, eles põem o power no trio, e vê-los ao vivo é uma experiência imersiva em que os instrumentos têm a capacidade de controlar o sistema motor dos mais sensíveis. Mas mais do que isso, em mim, os seus riffs impiedosos e as suas subversivas linhas de bateria têm a capacidade de se transformar em sensações de paz, ataraxia, ou talvez de uma espécie de felicidade mórbida. Do alinhamento, manifesto sempre com especial carinho as mais antigas, por isso destaco as arrebatadoras “Harper Lewis”, “Mladek”, “309” e “Youngblood” (única e melhor malha do encore), mas há muito mais sobre que dissertar aqui. A ocasião das suas visitas acaba por ser quase sempre a mesma, mas é a melhor de todas: um álbum novo. Este é o quinto e chama-se Guidance. Contou com um novo produtor, Kurt Ballou, que já colaborou com nomes como ISIS ou Doomriders, e que neste disco serviu talvez como guia espiritual de uma banda que já conta com 13 anos de vida neste universo do post-rock e que, ainda assim, nunca pára de se explorar. Desta vez, descartaram as colaborações com os amigos, e optaram por chamar Ballou, que habilmente os orientou neste processo de produzir o álbum mais fluido de todos. E cuja última faixa se chama “Lisboa”. Uma eterna metáfora para uma despedida. Mas é bom saber que não se esquecem de nós.
Fotografia: Luís Flôres