Não importa quantos discos se ouça, quantos vídeos se veja, quantos livros e artigos se leia. Nada nos prepara para a experiência que é ouvir uma kora ao vivo. Especialmente quando tal experiência vem das mãos do melhor tocador e kora do mundo – e do seu filho. Não tenho palavras capazes de, numa introdução, fazer a cama para as primeiras notas tocadas pelas mãos de Sidiki Diabaté.
Aquilo que ouvi às 21h30 no auditório da Culturgest não foram simplesmente cordas de um dos instrumentos mais belos do mundo, não. Foram autênticos sons do paraíso. Aos primeiros virtuosismos melódicos do mais novo prodígio da família Diabaté, chorrilhos de arrepios eriçaram a minha pele, sem qualquer sinal de que fossem parar. Camiões e camiões de emoções não cessavam de me atropelar. Cada nota mais me afundava na cadeira, cada reflexo de luz na superfície redonda da caixa sonora mais brilho transportava para os dós, rés, mis, semi-tons, semi-colcheias, semi-breves, escalas intermináveis.
Por momentos, levantava-se o iluminado rapaz para auxiliar o pai Toumani, também seu mestre, a subir ao palco. O aplauso era enorme e em nada exagerado. Após os primeiros acordes, já toda a sala eram sorrisos e lágrimas, em resposta à simbiose belíssima, com Sidiki divertidíssimo com os diálogos deliciosos e maravilhosos que travava com o pai, em palavras que transcendiam e dispensavam quaisquer línguas.
A música era sem dúvida a língua mais fácil para Toumani fazer o presente, fazendo dos seus dedos línguas que esvoaçavam e serpenteavam por entre as cordas de nylon que faziam soar. Um punhado de canções mágicas passado, o inglês tomou o lugar das notas para falar do passado. «Aquilo que vocês estão a ver é um museu vivo», contava-nos na sua serena voz. «São 700 anos de tradição; é o passado a encontrar-se com o presente, para o futuro». Com os dedos impacientes, a implorarem por «mais e mais música», caiu em si para nos falar da tal tradição e daquela coisa estranha que estava diante dele e de Sidiki. «Aqui, vocês dão carros aos vossos pequenos para eles brincarem. Nas nossas famílias, damos-lhes koras bebés, djembés bebés» – dizia, explicando como é que a tradição se mantinha tão viva ao fim de sete séculos, de já mais de 70 gerações.
Diabaté sénior cedia à vontade dos dedos e tocava mais uma fornada de notas a solo, antes de nos explicar concretamente todos os centímetros cúbicos da kora. 21 cordas, antigamente feitas de pele de antílope, agora de nylon. 4 dedos apenas, dois para a linha de baixo e outros dois para a melodia e improvisação. Uma cabaça grande, coberta de pele de vaca para obter a ressonância perfeita. Depois da curta demonstração, o pai explicava como ele e o filho tinham decidido fazer a canção que tocariam de seguida. Falou-nos de como, aquando da gravação do disco conjunto (em Londres), lhes custou ver as notícias dos milhares de pessoas que morriam dia após dia em Lampedusa, Itália, a tentar salvar-se da miséria, da fome e de muitos outros flagelos. Falou-nos de como lhe custa que as pessoas se limitem a olhar para o ecrã e a lamentar perante tragédias destas. De como cada um deve agir e fazer a sua parte, de como se devem lutar contra os estigmas e a descriminação, de como devemos unir-nos todos como uma família por Lampedusa e pelo mundo.
E, em homenagem aos tantos mortos, nasceu «Lampedusa». Mas, antes de a ouvirmos, tempo houve ainda para apelar ao amor, à paz. Para criticar a forma como os dirigentes lideram, colocando a economia à frente. Para criticar o dinheiro como entidade que dita o valor das pessoas. «Pra que vos serve uma casa com três ou quatro quartos se só podem dormir num? Pra que vos servem dois ou três carros se só podem andar num?»
Durante a arrebatadora «Lampedusa», tivemos ainda direito ao uso de um pedal de wah, por Sidiki, que enterneceu ainda mais as notas melosas da sua kora. A bonita e choramingona homenagem dava lugar às outras canções do disco, como a viciante «Rachid Ouiguini», cascata de escalas ritmadas que descem ribanceira abaixo e um encore, antecedido e seguido de ovações, aplausos, assobios e gritos merecidos. No final, as palavras de Toumani Diabaté eram claras e davam-nos esperança de uma repetição da experiência avassaladora daquela sexta-feira à noite: «Eu quero voltar, gosto sempre de vir aqui. Eu quero voltar a Lisboa, por isso já sabem…eu quero voltar» – e sorria, e sorríamos.