Pode o psicadelismo não rimar com imperialismo (cultural)? Este primeiro dia do Lisbon Psych Fest mostrou que sim. Teve a raríssima particularidade de não ter nenhum músico ou banda norte-americana a atuar. E, surpresa das surpresas, não deixou de ser muito bom. Tivemos música oriunda de Portugal, do Chile, da China e do Reino Unido (de onde vieram os Underground Youth, que encerraram a noite, e que com pena não pudemos ver), se é que ainda faz sentido falar de forma local sobre a música, que viaja hoje à velocidade da luz, de país para país.
Os primeiros a subir ao palco do Teatro do Bairro foram os portugueses Ganso. Ao vê-los em palco, é impossível não recordarmos os comparsas Capitão Fausto, por várias razões: são também eles um quinteto e a própria música recorda-nos os CF, meio caminho entre “Gazela” e “Pesar o Sol”. Deram um bom concerto, trazendo ora aceleração rock jovial prego a fundo ora paisagens espaciais para viajar, inspirado em particular no EP “Costela Ofendida” (2015), editado pela Cuca Monga. Aqueceram bem o ambiente, que só se incendiaria mais tarde.
Seguia-se Sun Blossoms, singular projeto de Alexandre Fernandes. Nem o autor do texto nem a fotógrafa que o acompanhou o tinham ainda visto ao vivo. Conhecíamos-lhe a música singular, espécie de psicadelismo lofi letárgico e arrastado, com paisagens sonoras pouco habituais por cá. Conhecíamos-lhe isso mas o que vimos foi muito mais: ainda que o seu álbum de estreia tenha sido editado apenas no ano passado, a evolução parece estar a ser evidente. O registo mantém-se, ao vivo, com uma formação que inclui membros dos Mighty Sands: mas ganha peso, intensidade e uma depuração sonora que retira as impurezas e salienta o que de melhor a sua música tem. Já se viam na plateia os primeiros semblantes cerrados, de olhos fechados, num escapismo interior feito de matéria sonora.
Também os Chui Wan se revelaram uma belíssima surpresa. Descrevem-se como “uma banda de rock psicandélico experimental de Beijing, China” e a descrição assenta-lhes maravilhosamente. Num registo mais eletrônico que os anteriores, mostrou que o psicadelismo não tem nem pátria nem registo sonoro específico: presta-se a todas as viagens, esta feita até ao Oriente.
Seguiram-se os Chicos de Nazca, um dos nomes mais aguardados pelo público, que começaram a encher o espaço mais próximo do palco. A banda chilena, nascida num meio que já nos trouxe os Föllakzoid, os Holydrug Couple (que passaram recentemente por Cascais) e os LA Hell Gang, por exemplo (esta última muito próxima dos Chicos de Nazca, até porque o vocalista e guitarrista das duas bandas é o mesmo: “KB Cabala”), chegou com um álbum relativamente fresco, “Blowing inside”, editado em 2015. E trouxe a Lisboa o seu psicadelismo ora sonhador ora fantasmagórico, banhado em distorção, menos frenético que reflexivo, capaz de nos transportar até outro universo.
Os portugueses 10 000 Russos apresentaram-se de seguida e mantiveram a toada de qualidade. Com o seu psicadelismo mais sombrio e tribal, onde o som distorcido convivia com frases apocalípticas cheias de negrume, acrescentaram algum peso à sonoridade que se ouvia, deixando todos os espectadores num transe interior, qual pesadelo sonoro que, de tão rico e hipnótico, não apetecia sair.
Com os Underground Youth a fecharem o primeiro dia, o festival seguiu, na sua segunda noite, com os britânicos GNOD, os franceses You Said Strange, os Tau e Alek Rein, o impressionante projeto de cançonetismo psicandélico-pastoral de Alexandre Rendeiro (de quem ainda muito ouviremos falar, este ano), entre outros. Um reflexo da riqueza e amplitude do cartaz, que soube novamente fugir a algumas escolhas mais evidentes para trazer um conjunto de concertos diversificados, unidos pelo escapismo existencial que caracteriza o universo sonoro de um conceito tão complexo quanto o psicadelismo.
Fotografias por: Filipa Leite