Noites frias, salas quentes. Com Dezembro à porta, esta em particular prometia; um espetáculo que reuniria três indiscutíveis mãos pesadas do panorama musical português mais recente – Filho da Mãe, PAUS e Linda Martini. Na mais bela Galeria Zé dos Bois. E como prometia; duas datas, ambas esgotadas. Esta seria a última das duas.
Rui Carvalho, ou Filho da Mãe, sabe o que faz; não se deixa intimidar pela hercúlea tarefa de ser o primeiro a pisar o palco no qual se seguirão duas doses de Hélio Morais – que garantem, pelo menos no que toca à percussão, viagens barulhentas e com bastante turbulência. Inclinado sobre a guitarra, martela melodias que, embora não sejam tão ruidosas ou turbulentas como as que se seguirão com as restantes atuações, não deixam de ganhar, por se verem enclausuradas por uma crueza comovente de quem se despe das fúrias do quotidiano e as entrega, desnudo, ao público atento. E que público. A sala, esgotada, como já foi referido, via um mar de gente calada, quase a suster a respiração, certamente a tentar beber o máximo das notas que esbarravam nas paredes. Um espetáculo intimista, uma banda sonora conseguida apenas com dez dedos e uma guitarra. Certamente o momento mais bonito e caloroso da noite, que conseguiria aquecer quem o visse mesmo numa noite fria de Novembro como esta.
Se a delicadeza de Filho da Mãe aqueceu o público, PAUS pretendiam fazê-lo arder. O primeiro projeto da noite protagonizado por Hélio Morais recebeu a audiência com trocas de piadas e conversa de café bem-disposta, antes de embarcar num furacão de baterias, teclados e baixos que poderiam ter feito o estuque cair. Partiram tudo em seu redor, em género de desastre natural, passando por êxitos do seu último esforço, Clarão, como «Corta Vazas», «Bandeira Branca» e, naturalmente, a própria «Clarão». Um reboliço completo que deu vontade de tentar dançar num espaço no qual provavelmente culminaria numa cotovelada fatal no vizinho do lado… Brincalhões e cheios de boa-onda, PAUS são certamente uma fonte de simpatia e de barulho bom. Caso para dizer, «é melhor ao vivo». E se é.
Finalmente, chegara a hora do concerto mais esperado da noite; após uma breve demora, surgiram em palco aquelas já conhecidas quatro vedetas da música portuguesa. Uma delas voltava a ocupar o lugar que ocupara no concerto anterior, e o retorno ao palco de Hélio Morais na bateria não deixou de ser motivo de brincadeira – «mudei de meias». Mas não estavam lá para brincar; felizmente, mantiveram as demoras e os diálogos desnecessários ao mínimo (não dispensando de dois dedos de conversa cordial com o público) e dedicaram-se a entregar o bom rock ao qual já nos têm habituado.
Se são das maiores bandas portuguesas da atualidade? Sim, isso seria indiscutível. Bastaria olhar para a pequena sala escura a abarrotar de gente. E das mais sobrevalorizadas também, não? Poder-se-ia considerar seriamente; mas hoje, deixaram-se essas teimas à porta. Num dos melhores esforços dos últimos tempos – e num concerto consideravelmente melhor do que aquele que foi em Paredes de Coura -, Linda Martini fecharam os olhos e entregaram-se por completo à tarefa de fazer cabeças tremer e vozes enrouquecer. Após uma forte abertura com «Dá-me a Tua Melhor Faca», que se fez chegar sem pressas, imponente, senhora música do seu nariz, debateram-se violentamente sobre os instrumentos e foram os coros de «Ratos» e «Juárez» que fizeram a sala estremecer. Seguiram-se mais surpresas, como a bonita «Belarmino» e a entusiasticamente recebida «Estuque». Por vezes, faltou a entrega completa do público, que parecia perdido algures entre um constrangimento e desconforto causado pela falta de espaço para respirar e um bocejo com saudades da cama. Mas no que toca à música, ouviu-se e bem.
Esbaforida, Cláudia Guerreiro chega-se ao microfone; «esta é a última, muito obrigada». Já? Ouvem-se os primeiros acordes irreconhecíveis da já célebre «Cem Metros Sereia» e não restam dúvidas que a festa está para acabar. Em palco, uma tempestade. Chuva forte, ventos que assobiam sob a forma de uma simbiose selvagem mas certeira de baixo, guitarras e bateria. Acalma tudo; o sol espreita por entre as nuvens. Ouvem-se aqueles gemidos da guitarra que já ouvimos tantas vezes, a puxar a chegada daquela frase que também já não nos é estranha – «foder é perto de te amar, se eu não ficar perto». O público entoa, entretido e tímido, a banda acompanha, a música sobe e rebenta com o que restaria do teto, o público tortura os pulmões até o palco se calar e o coro se elevar como uma marcha majestosa. É algo bonito de se ver, quer seja a primeira ou a milionésima vez; uma tradição que já nos é querida, que já nos é gasta, que nos sabe a casa. E com isto, as luzes acendem-se. Acabou-se a festa.
Uma noite de facto bonita, com três concertos fortes e um palco bem recheado. Agora vamos para casa – somos putos, e temos aulas amanhã.