O cenário há muito estava montado: Sereia Louca foi bem recebido por toda a parte, Capicua parece estar finalmente a ter o reconhecimento que o seu talento exige, e o Musicbox estava esgotado há vários dias. Foi assim que, pouco passava da meia-noite de sábado, a sala lisboeta se encontrada lotada até ao tecto para receber a rapper portuense que tinha, neste espectáculo, uma espécie de consagração do seu percurso recente.
As primeiras impressões foram surpreendentes: este não era o típico público de um concerto de hip-hop. Muitas mulheres, muitas, uma tribo mais indie que rap, o som das rimas a, felizmente, testar as águas da aceitação mainstream.
Quanto ao espetáculo em si, começou ao som de “Sereia louca”, primeiro avanço do disco com o mesmo nome. Em palco, apenas três presenças a todo o tempo: M7, rapper portuense que tem vários momentos de destaque no disco; D-One, o mago por trás dos pratos e da electrónica, ou seja, assegurando toda a rede instrumental do espectáculo; e a própria Capicua. Esta, tal como M7, entraram um pouco a frio. Percebia-se que o espectáculo era importante e, nos primeiros momentos, algum medo de falhar. Acontece que a sala estava mais do que conquistada à partida: nunca poderia correr mal. Com o passar das primeiras músicas e o reforçar do sentimento de muito boa onda que se vivia na sala, as vozes do palco foram-se soltando, ganhando ainda mais garra e mais à-vontade.
Dizia que a sala estava conquistada, e esta ideia é importante de explorar. A conquista deste disco, e da arte de Capicua, está nas letras, na mensagem, naquela ténue e difícil fronteira entre o pessoal e o geral, o íntimo que pode parecer simplista mas nunca é foleiro, as forças e as fraquezas de uma luta que é a de qualquer pessoa, a vida. Daí termos muita gente a rappar as letras do princípio ao fim, raparigas de camisas de flanela que nunca seriam apanhadas – antes – num concerto de hip-hop, gente do rock, do indie, de todo o lado.
A primeira metade do show foi Sereia Louca; tanto a Cabeça (a primeira parte do disco) como a Cauda (a segunda, trabalho acústico sobre temas mais antigos) com a entrada em cena da voz doce e cheia de feeling de Mistah Isaac. A segunda metade foi mais dura, mais pura, mais old school, com espaço para as mãos no ar e para uma batida mais forte. A tudo o público respondeu, e tudo recebeu de volta.
Os momentos mais altos terão sido “Mão Pesada”, com a implacável Marta (M7), qual Paulinho Santos das palavras, a debitar as suas convicções inquestionáveis com uma pica que dá vontade de ouvir mais da sua autoria; “Casa no campo”, claramente uma favorita do público, com Mistah Isaac a espalhar a habitual magia; “Soldadinho”, com a fadista Gisela João; e “Vayorken”, o tema mais festivo de Sereia Louca, que praticamente fechou a noite em tom de grande comunhão. Um espectáculo que viveu também muito das ilustrações que Dário Cannatá (autor do artwork de Capicua já há algum tempo) ia desenhando na tela por trás do palco.
Houve um momento em que, com Gisela João em palco, Capicua pergunta se o público estava pronto para ter três mulheres do norte em cima do palco (Gisela, Capicua e M7). A resposta foi simples e muito audível: claro que sim. Porque, e isso sentia-se desde o princípio, as pessoas estavam lá não apenas para ouvir música: estavam para fazer saber a Capicua e aos seus que eram bem-vindos, que os temas falam fundo a muita gente e que o futuro está apenas a começar.
Esse triunvirato (apesar de Gisela João ter entrado apenas para “Soldadinho”), essa troika de mulheres do norte, representava muito do que foi a noite: M7, a garra num pequeno corpo de tensão; Gisela João, a sensualidade numa voz quente (e num vestido muito fresco); e Capicua, a cabeça, o coração, a síntese.
De resto, muita interação de Capicua com o público, muitas dedicatórias, muita alegria. Mais do que uma vez – e voltemos ao triunvirato – a dedicação foi às mulheres (e parece que havia até uma despedida de solteira no concerto!). Isto, num género que nem sempre recebeu bem as mulheres, é refrescante. Concerto de hip-hop feminista e no feminino; pronúncia do Norte no coração de Lisboa; o rap a sair do bairro (e não faltará quem se prepare para criticar o sucesso); os putos e menos-putos do indie a quebrarem os seus próprios preconceitos musicais. O futuro é feito disto.
O sucesso que o mainstream começa a dar a Capicua tem tanto mais valor quanto o facto de ela não se ter vendido um milímetro para o atingir: limitou-se a ser quem é, e é o reconhecimento dessa voz pessoal que lhe garante os fãs de ontem, de hoje, e de amanhã.
“Obrigado, Lisboa”, dizia ela, enquanto abraçava enormes ramos de flores que a amiga e fadista de Barcelos lhe havia levado para o palco.
Nós é que agradecemos.
PS – à mesma hora do concerto de Capicua, outra grande festa acontecia em Lisboa, com o espectáculo dos britânicos Toy. Dois projectos que nos deram dos melhores discos dos últimos meses. De saudar é que, decorrido pouco mais de um trimestre de 2014, a cena musical portuguesa já nos tenha dado discos que, até aqui, estão obrigatoriamente nos melhores do ano. Com crise, com troika, com saídas limpas ou sujas, há coisas que já ninguém nos tira: Bruno Pernadas, Capicua, Capitão Fausto, Dead Combo, The Legendary Tigerman, 5-30, You can’t win Charlie Brown, e muitos ficam por mencionar. A luta e a criatividade lusa estão vivas.
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(Fotos: Duarte Pinto Coelho)