Incubadora Altamont

Quem quer viver na ilha de Sallim?

Se, há quase três anos, Francisca Salema (“Sallim”) não tivesse mostrado as suas canções a João Marcelo (“Éme”), através do Facebook, existiria hoje Isula, o álbum que promete marcar a música portuguesa neste ano de 2016? Ninguém sabe. Mas foi também de uma sucessão de acasos, de avanços e recuos, que se fez o percurso de “Sallim”, uma das novas e melhores cantautoras que este país tem (arriscamos mesmo: que este país já viu).

Por essa altura, após uma curta passagem pela Faculdade de Belas Artes, Francisca Salema (hoje prestes a fazer 22 anos) já se tinha fartado de fazer covers. Tanto que deixou até de tocar durante um largo período: “Deixei de tocar até porque, lá está, senti que deixou de fazer sentido estar a tocar covers, já não gostava de fazer isso”. Daí surgiu uma decisão: “Comecei a escrever as minhas canções”, conta, em conversa.

Encontrámo-la sentada num muro, na Quinta das Conchas, vinda da Faculdade de Letras de Lisboa, onde estuda. Segurando a guitarra que herdou do pai, e que desta vez levou na viagem que habitualmente faz entre a Cruz Quebrada, onde vive, e a cidade de Lisboa — viagem que lhe serve também de gatilho para canções (“Entrei num comboio para lado nenhum”, canta em “Uma laranja no bolso”, quinto tema de Isula) —, Sallim diz que a paixão por fazer música nasceu sobretudo por gostar de cantar:

“Eu sempre gostei muito de cantar, era a minha cena. E aprendi a tocar guitarra um bocado para poder cantar. Nunca me interessou muito ser uma boss da guitarra, [esta] era mais para poder acompanhar as músicas”

Como é que, passados três anos, Sallim irrompe no panorama musical português com o disco de estreia Isula, compêndio de algumas das mais delicadas e encantadoras canções cantadas em português? Voltamos ao início: com a ligação a Éme (João Marcelo) e à sua editora, a Cafetra. “Não o conhecia pessoalmente. Já tinha ouvido falar na Cafetra. (…) Mandei [as canções] naquela: gosto do que fazes, eu também faço música, ouve aí, se curtires… Ele ficou bué contente e mostrou ao resto deles. Mandou à Cafetra, eles ouviram, também gostaram (…). Foi tudo muito rápido a partir daí. E pronto, foi através deles, no fundo. Foram eles q me puseram a tocar. E depois ficámos amigos”, diz.

Sallim, que até então gravara “para o seu umbigo”, confinada à introspeção do seu quarto, foi obrigada a sair da toca e a entrar numa “outra porta”: a do antigo estúdio da Cafetra, situado nas Olaias. Ao principio, confessa Sallim, foi “um bocado estranho”: “as músicas que eu faço são bué intimas, são muito sobre o que eu sinto. De repente estar a tocá-las para outras pessoas, estar a gravá-las com outras pessoas… claro que foi um bocado estranho ao início”.

Mas irremediavelmente, à medida que os laços de amizade a aproximavam da família Cafetra, o conforto chegou. Em Outubro de 2014, Sallim gravaria duas longas canções com Van Ayres e Yan Gant Y Tan. Dois meses depois, após repetidas insistências de Leonardo Bindilatti, que mais tarde se tornaria produtor do disco, Francisca começaria a trabalhar no seu álbum de estreia.

E Isula até nasceu de um problema de tradução. Sallim tinha um nome para dar ao seu álbum de estreia: Isola, que significa ilha, em italiano. Mas rapidamente o nome virou “Isula”, pela sonoridade mais bonita da palavra e para evitar que fosse confundida com o verbo “isolar”. O título acaba, assim, por ser uma palavra que “não existe”:

“Isula, na verdade, é uma palavra que não existe, mas que parte dessa palavra [“Isola”, ilha] e dessa ideia. Era mais pelo som, pela palavra que eu não gostava. Mas acho que tem muito a ver com isso [isolamento], sim. Acho que a música é um espaço muito de estar sozinho, pelo menos para mim”.

O álbum é um longa duração feito a quatro mãos: as duas de Francisca Salema e as de José Eduardo (ou “Yan Gant Y Tan”, como se apresenta na música), que toca guitarra, baixo e teclados em Isula e cuja importância Sallim gosta de sublinhar: “Ele ajudou-me imenso a fazer os arranjos, eu gravei com ele as demos [das canções] antes e ele esteve lá sempre, nas gravações. Também tocou no disco. Foi muito importante”.

Apesar da mão de terceiros, Isula consegue preservar a mistica reverberada e acolhedora que Sallim encontrou nos seus aposentos. Para atingir um template de produção que atingisse tal essência adocicada em estúdio, 2015 foi um ano de tentativo e erro: “Fomos falando. Eu gravei as demos para ele [Leonardo Bindilatti] perceber que tipo de arranjos e produção é que eu queria. Ele foi bué atento a isso”, explicou Francisca. Um exemplo? Ao invés do batuque da caneta que usara nas demos, Francisca usou um cano como um instrumento de percussão na canção “Laranja no bolso”.

As gravações (quase todas no estúdio das Olaias; só as vozes foram gravadas noutros locais, metade em casa de Leonardo Bindilatti, metade no estúdio da Interpress, no Bairro Alto) deram à luz 11 canções difíceis de definir: suaves e delicadas mas também orgânicas e bem produzidas, nascidas de uma necessidade de expressão musical que está também ligada à poesia, à musicalidade das palavras e à procura da beleza enquanto conceito estético e melódico. Tudo envolto num disco também ele concebido pessoalmente por Sallim, enquanto objeto: o design é todo feito por ela, incluída a capa, um autoretrato à beira-mar, que descreve bem a sua música íntima e cuidada.

Entretanto, Sallim editou e apresentou esse primeiro álbum, o que aconteceu no passado dia 19 de março, na Galeria Monumental, em Lisboa. Perguntamos-lhe se sente a pressão de dar um primeiro passo como este e ela admite que sim, mas garante que viveu momentos de maior pressão durante as hesitações de 2015, quando chegou mesmo a achar que Isula não veria a luz do dia: “Este disco teve fases em que achava que já não [o] ia lançar, porque acho que essa presão senti-a mais na altura em que estava a acontecer a realização do disco em si, [não agora]. Já tive tempo para me mentalizar deste disco. [Mas] sim, [ainda] sinto alguma pressão, claro. Agora tenho de fazer melhor do que já fiz, tenho de fazer sempre melhor. Isso é um bocado assustador, mas não é assim tanto. E é bom ”.

Uma pressão que, contudo, não a assusta nem a faz recuar. Quando lhe perguntamos por objetivos para o futuro, quando o seu caminho ainda se faz no presente (com um álbum novo tão fresco que ainda está para sair), mostra-se mais feliz do que assustada com a sua nova ligação à música: “[Quero] gravar outro [disco]. O mais rapidamente possível. E concertos, claro. Quero bué tocar”. O futuro, como cantava B Fachada em B Fachada é p’ra meninos, é sempre incerto. Por ora, aproveitemos que Sallim esteja a partilhar a sua intimidade com todos nós. E tão bonita que ela é.

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