Xei di Kor é um dos grandes monumentos do hip hop nacional. O maior desde Híbrido.
O primeiro som que se ouve no mais recente álbum de Chullage é o de um instrumento de percussão a imitar uma cascavel. Depois entra um kora e por fim a voz de Nuno Santos. “Só p’á avisar que nada vai ficar retido na minha laringe”, avisa-nos.
“Xei di Kor”, a faixa título do disco e primeira canção do alinhamento é quase como um manifesto de Prétu, a nova identidade do artista. “Hoje dou um tiro no bicéfalo. Morre um branco. Morre um preto. E nasci eu: Prétu. Xei di Kor”, proclama o rapper responsável por uma das grandes discografias do rap nacional de que este é apenas o mais recente tomo.
Nesta canção-manifesto, Xullaji dá o mote do que aí vem. Um disco pesado, com várias camadas, letras de intervenção social e uma garra que não tem par. É um homem com uma mensagem e que a espalha envolvida na música mais entusiasmante que ouvimos nas últimas décadas.
Mas Prétu não é um projecto de um homem contra o mundo. Não, Xullaji é um homem social que percebe que é mais forte quando está acompanhado. Chamou o mestre do kora José Braima Galissá e o percussionista Mick Trovoada, mas também Scúru Fitchádu, Landim, Tristany, Dino D’Santiago ou Cachupa Psicadélica.
“Fla Ma Ka Gosta di Prétu” é uma denúncia do “falso amor” votado à cultura negra por uma Lisboa que se afirma multicultural (deu até origem a um novo género, o “Nova Lisboa”, cuja figura de proa é Dino d’Santiago), interpelando de forma cínica temas que foram grandes sucessos no país como “Bô Tem Mel” ou “Não me Toca”.
Já “Waters (Pa Nu Poi Koraji)”, com Lowrasta é uma derivação a partir de “Strange Fruits” e que compara a condição dos escravos que chegavam à Europa vindos de África – “Frutos estranhos que lhes caem aos pés/ Peixes estranhos chegam com a marés” – com o dos atuais afro-descendentes, igualmente dispensáveis, igualmente ignorados: “É só um corpo que naufraga, um corpo que se afoga/ Nas vagas da vida que a Europa revoga/ Nas balas da bófia que a América advoga/ Nas celas em voga onde a Líbia Nos joga”.
O disco tem uma faixa menos interessante que é “Fidju Maria” porque sentimos que é uma típica canção de Dino d’Santiago (com tudo o que isso tem de bom), mas que não surpreende como as restantes. Longe de ser uma canção medíocre, é apenas uma canção que é mais Dino do que Prétu.
De resto, não há qualquer falha a apontar.
Musicalmente, o disco deve tanto ao funaná e ao rap como à música industrial e às mornas. Cita Os Tubarões, Billie Holliday, Cesária Évora, ou Gil Scott-Heron. É construído em samples com instrumentação original e tanto tem de rap, como de declamação ou canto. Todos estes elementos tornam-no num artefacto único. Mais ninguém encaixa nestas canções como Xullaji (e os seus convidados).
Tematicamente, é um disco sob o signo de James Baldwin, Amílcar Cabral e Frantz Fanon, sem esquecer Angela Davis, Malcolm X ou – e porque não? – General D. E entre os inimigos bem identificados: os falsos democratas, os populistas, os racistas, os tecnocratas que valorizam mais o dinheiro do que vidas perdidas no Mediterrâneo (os dedos estão bem apontados em “Todos Quem?”), há um que é transversal: a tecnologia que se promove como gregária, mas que, no entender de Nuno Santos, faz mais por dividir do que unir.
E se começa com um manifesto, é apenas temático que termine com outro. “A Revolução não vai ser um tweet”, berra Prétu. “Não sou robot and I’m proud”, assegura o músico que garante ainda que não se vai poder subir o brilho e baixar o som quando a revolução sair para a street. Mesmo que a revolução seja interrompida a meio, como sugere a interrupção súbita a Nuno Santos no final da canção.
Xei di Kor é um dos grandes monumentos do hip hop nacional. O maior desde Híbrido.