Dummy é lúgubre mas sensual, como o decote lânguido de uma viúva chorosa.
Qual é o disco mais triste de sempre? Closer dos Joy Division? Pink Moon do Nick Drake? Um dos dois, certamente. Mas não nos podemos esquecer que foi gente que se matou pouco depois. Assim também eu. É batota. É dopping biográfico. Estão desclassificados.
Dummy aproveita, subindo ao primeiro lugar. Os invejosos dirão: “ah e tal, mas só ganhou na secretaria”. Mas é injusto. Conseguir chegar a todo aquele negrume e continuar a ter uma vida é obra. Isso quer dizer que os Portishead são gente igual a nós, gente que cai mas que depois se levanta, e que mesmo assim conseguem deitar cá para fora um desespero tão absoluto como o de Dummy. Estes, sim, são artistas a sério, tipos lúcidos o suficiente para distinguir a vida da arte (porque a arte é muito maior do que a vida). Para o fim, Ian Curtis já não criava sombras, ele era as próprias sombras, numa confusão total entre criador e criação. Como um pintor transformado no seu próprio quadro, a moldura cravando-se pela sua pele adentro.
Com os Portishead é diferente. Beth Gibbons consegue preencher os papéis do IRS de manhã, mudar o óleo do carro à tarde, e escrever, depois de deitar os miúdos, a canção mais triste do mundo. Sem essa distância de segurança, a arte torna-se pornográfica. Closer e Pink Moon já não são discos, são sessões do cine-estúdio, primeiríssimo escalão.
Os Portishead são, portanto, uma espécie de oleiros da angústia. Ela não aparece totalmente formada, pronta a sair cá para fora. Vai sendo modelada com carinho no torno, desbastando um bocado aqui, outro bocado acolá, até a angústia adquirir aquela forma perfeita que encontramos em Dummy.
É um processo lento e laborioso. Primeiro de tudo, tiveram que ir para a faculdade do trip-hop estudar o Blue Lines: tempos arrastados no primeiro semestre, introdução à melancolia no segundo semestre, estágio em minimalismo e mestiçagem pop, dissertação em beats saborosos, baixos cavernosos e samples vintage. Nota final: já foste, Blue Lines.
Depois, cada um dos três magníficos seguiu o seu ramo de especialização. Geoff Barrow passou tardes infinitas na cave da Carbono, para encontrar aqueles sete segundos de um obscuro disco de soul, que, repetidos num loop, formam a circunferência da solidão. Adrian Utley viu o Dr. No do 007 mais de setecentas vezes, até aquela guitarra trémula e ansiosa à John Barry se tornar numa segunda língua. Beth Gibbons enfiou-se na encruzilhada do diabo à meia-noite, oferecendo uma garrafa de whisky ao fantasma da Billie Holiday em troca da sua voz soluçar destino e blues também.
E depois vem o sexo. Closer e Pink Moon têm a castidade das campas dos cemitérios. Já Dummy é lúgubre mas sensual, como o decote lânguido de uma viúva chorosa. A voz de Gibbons encostada ao microfone é quase obscena. Ouvimos tudo: a respiração do seu corpo, o arfar da sua alma. Parece que afinal é um mito antropológico os esquimós terem 70 nomes diferentes para “branco”. Mas é a mais absoluta das verdades que encontramos 70 desolações diferentes na voz de Beth.
Encantados pela modernidade e sofisticação de Dummy, tornou-se um lugar-comum servi-lo num jantar aos convivas, entre o souflé de peixe e o gin com açafrão. É parvo. Quando uma classe média sofisticada trata Dummy como um frívolo sinal de status está a trair toda a sua verdade, como quem paga a uma mulher que se ama. Dummy só se deve ouvir em duas circunstâncias: quando estamos sozinhos na merda; quando estamos na merda junto a alguém especial. As restantes formas de consumo são putedo. Seja lá qual for o preço da água tónica XPTO.