Desta vez, e após uma ausência prolongada por motivos diversos, dou-vos a escutar uma obra imprescindível da história do Jazz moderno. Um ensaio crítico polissémico para compreensão da música e dos sons que erigem as manifestações musicais.
Karma, o terceiro álbum de Pharoah Sanders, é aquele que melhor o define como músico de sempre.
Após a morte de Coltrane, a 17 de Julho de 1967, muitos foram os músicos que procuraram continuar a fazer música espiritual, exprimindo, de forma global, as suas ideias e anseios enquanto seres curiosos pela vida. Mas de facto foi Sanders, em 1969, o primeiro a surgir com inusitada mercadoria. Existem apenas duas faixas em Karma. “The Creator Has a Master Plan”, uma faixa com mais de 32 minutos, e “Colors”, de cinco minutos e meio de duração. Falando apenas em termos formais, este disco é uma verdadeira aberração. Dois temas com tempos tão díspares, mas que em termos de conteúdo, completam-se na perfeição. Isto não só revela liberdade de acção, como também fortalece o conceito holístico que Pharoah Sanders pretendeu justapor a Karma.
A banda criada para este projecto, liderada pelo saxofonista tenor Farrell (Pharoah) Sanders, revelou ser um sucesso. Acompanhado pela voz e percussão de Leon Thomas, que desempenha um papel fundamental na construção das duas faixas, este disco conta ainda com a prestação de mais nove músicos.
“The Creator”, momento de evidente transe espiritual, começa com uma citação de “A Love Supreme”, reverência à contínua influência de Coltrane sobre Sanders. Mas além desse pormenor, este tema espelha o próprio compromisso profundo de Sanders com o lirismo, e o seu conhecimento agora inerente da respiração oriental e técnicas modais. A capacidade de usar o ostinato não se tornou numa forma de manter a sintonia no seu lugar, enquanto outros elementos vão solando, mas sim numa maneira de empurrá-la irrepreensivelmente para a frente. Mantendo-se apoiado a uma gama limitada de notas (atentemos os primeiros sete minutos e meio do tema), Sanders explora todas as cores ao redor das figuras-chave, construindo gradualmente uma dinâmica com a banda, sobre variações em apenas dois acordes, mas com inúmeros graus de invenção tímbrica.
“Colors” é sobretudo um desfecho formal de tonalidades mais simples e serenas, da meia hora que o antecede.
A evolução do Jazz sofreu uma grande ruptura através dos seguidores do pós-bop de John Coltrane, movidos na direcção “menos inteligível e sem forma” do Free Jazz. O saxofonista Pharoah Sanders é um dos músicos mais memoráveis que tocaram com o falecido Coltrane, e que com a sua preciosa influência passaram para o domínio da Avant-Garde jazzistica. Mas Sanders não se reservou somente a essa condição. Ele continuou a caminhar, ainda mais, até adoptar uma abordagem afro-cêntrica, polirrítmica e metafísica do Jazz.
A sessão original, gravada nos estúdios RCA em Nova York, datam de Fevereiro de 1969. Existe porém uma versão remasterizada digitalmente, em 20-Bit Super Mapping, da Impulse Records, que permite uma audição de excelente qualidade, assim como um rico usufruto da diversidade instrumental da obra.