Pelo décimo quarto ano consecutivo, o OUT.FEST inundou a franja sul do Tejo para voltar a fazer a diferença e a deixar uma marca indelével na nossa memória colectiva.
Todos os anos, OUT.FEST é sinónimo de quatro dias a ouvir muita da melhor música exploratória que se faz no país e lá fora. Este ano não foi excepção e entre os dias 4 e 7 de Outubro o festival mais ousado do Barreiro trouxe novamente exemplares da elite da música experimental, da electrónica mais pura e sintética ao jazz mais livre e orgânico, do noise dançável aos ritmos quentes da Batida.
Além da música, a riqueza do OUT.FEST passa também pelos espaços onde o festival tem lugar. No primeiro dia, na Igreja de Santa Maria, houve a colaboração entre Jonathan Uliel Saldanha, Coral TAB e o Coro B-Voice.
No segundo dia, no magnificamente reverberante salão do Museu Industrial da Baía do Tejo, ouviu-se, em primeiro lugar, o Quarteto Sei Miguel. O excêntrico trompete de bolso de Sei Miguel, acompanhado de uma bafejante guitarra eléctrica, uma percussão titubeante e um entrópico trombone, criaram uma paisagem sonora que nos embriagava, nos fazia passear por uma rua vazia, àquela hora escura, a lutar contra as nossas dissonâncias interiores, tentando encontrar sentido na desordem. De seguida, a italiana Caterina Barbieri maravilhou-nos com as suas sequências sintéticas que ecoavam matematicamente pelas paredes e superfícies do museu. A magia dos seus sintetizadores modulares confundia os nossos sentidos e deixávamos de saber se o que ouvíamos era produto da nossa cabeça ou dos impulsos do ar que a sala ia acomodando, em todos os pontos perspécticos possíveis. Os mil e um cabos que ligavam os componentes eléctricos dialogavam com os vários frascos de compostos químicos expostos na sala, a alquimia de tempos idos metafisicamente dançando com um futuro sinteticamente divino, percorrendo com mestria vários campos da música electrónica (e) ambiental. Por fim, a aparição do mensageiro Charlemagne Palestine encantou e desencantou pela simplicidade e brevidade da mesma. Um drone, dois copos cheios e um microfone foram a matéria prima para Palestine serpentear por entre ragas só seus, tornando-os do mundo.
Ao terceiro dia, no mui bem sonante Auditório Municipal Augusto Cabrita, continuou a cartografia exploratória do OUT.FEST. Casa Futuro, trio composto por Pedro Sousa, Johan Berthling e Gabriel Ferrandini, experienciou-nos qual Jimi Hendrix através da liberdade nunca prevísível (ao contrário do Quarteto Sei Miguel), da rapidez desafiante com que Ferrandini testava os nossos olhos e a sua capacidade para detectar movimento – antes dando o corpo primazia, como se quer, ao ouvido -, do delirium tremens constante da fusão da bateria malabarista, dos acutilantes harmónicos do contrabaixo e do saxofone esguio e rápido como um lagarto. Depois, tempo para as canções soltas e cerebrais dos veteranos Pere Ubu (The Moon Unit), que numa densa sensibilidade testaram a capacidade da sala em texturar com detalhe cada um dos instrumentos – o escalador oboé, a percussão digital estilhaçada, a guitarra levemente distorcida, entre outros. A sala passou o teste e o espelho sónico da mente David Thomas, sempre num escombroso fluxo de consciência, só deixou a desejar pela forma como este tratava a própria banda e o público. Por último, subiu ao palco a russa Inga Copeland (sob o nome de Lolina), que, electronicamente, desafiou os limites da catalogação de géneros musicais.
Para terminar, a Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios (ADAO) do Barreiro encheu para receber o dia mais excêntrico do festival. Quatro salas, seis horas e meia de música. Durante esse tempo, que vimos passar com a maior das brevidades, tivemos a oportunidade de sentir as vibrações crípticas de Nocturnal Emissions, de perceber a contemporaneidade latente dos This Is Not This Heat, a contenção e a austeridade da electrónica da portuguesa Jejuno, a ordem de soltura para Black Dice e o seu imponente, destrutivo e libertador noise rock, o emaranhado textural digital do lisboeta GYUR e, por fim, as escaldantes percussões e tântricos sintetizadores do luso-angolano DJ Nigga Fox.
Mais uma vez, o OUT.FEST fica na nossa memória como lugar de miscigenação musical, onde a criatividade e a ousadia transcendem a importância do género e o som se torna elemento central da linguagem. Onde a língua franca da música descarta a banalidade e se torna totalmente livre. Em suma, uma utopia sonora na qual queremos viver em permanência. Sendo impossível a permanência, esperamos voltar a atravessar o rio daqui a um ano, para voltar a ouvir o que anda nas margens.
Fotos gentilmente cedidas por Vera Marmelo.