Este ano o OUT.FEST fez-se em versão redux, com os habituais quatro dias de festival comprimidos em dois, facto que abafou um bocadinho da natureza única do festival anual do Barreiro. Se em edições anteriores havia vagar para ouvir diversos concertos do início ao fim – e, regra geral, sempre singulares -, em 2018 não tanto.
A primeira noite, passada inteiramente na Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios (ADAO), abriu-nos o apetite com as inacreditáveis percussões de João Pais Filipe. Na apresentação do seu álbum homónimo, o percussionista e artesão de címbalos e gongos fez dançar os corpos (mas também os neurónios) de uma plateia sentada, indo da energia dos ritmos mais extasiantes à exploração paciente das ressonâncias mais escondidas no seu arsenal percussivo.
A performance de Toda Matéria revelou-nos (ou escondeu de nós?) um corpo informe de ruídos e notas livres, acompanhado de uma coreografia aparentemente improvisada que lhe parecia medir os contornos, ansiosos por se definir. Logo de seguida, de volta à sala principal, tempo de revivalismo com Vítor Rua e António Duarte a tomarem a forma de Telectu e do mito Belzebu, revelado ao mundo em 1983.
Ainda que a nostalgia seja uma forma privilegiada de catarse, o soco de Group A obliterou tudo o que se tinha passado momentos antes. O duo de Tommi Tokyo e Sayaka Botanic, japonesas sediadas em Berlim, trouxe noise estonteante e cadeias de sequenciadores, samplers, pedais e outros dispositivos que fizeram suar uma plateia desnorteada com o intenso delírio sonoro e performativo das duas artistas. A finalizar a noite, Nídia trouxe companhia – duas rappers e dois percussionistas – para uma (em)poderosa prestação, que foi do rap crioulo e de congas selvagens na primeira metade aos ritmos fervorosos do tarraxo ou da batida na segunda metade, para destilar as últimas gotas de suor.
Depois de sairmos da ADAO de coração só meio cheio – especialmente graças a João Pais Filipe e Group A -, ao segundo dia de festival foi mais difícil chegar àquele sentimento a que o OUT.FEST nos tem habituado ao longo dos anos, de uma completude musical e sonora ímpar.
Clothilde foi a primeira a chegar aos nossos tímpanos e objectiva, com o seu admirável laboratório sónico feito de sintetizadores modulares artesanais a agitar as moléculas do primeiro andar do Lado B, na Escola de Jazz do Barreiro, com sons reminiscentes dos presentes em Twitcher, álbum editado este ano pela lisboeta Labareda. Da exploração da síntese modular partimos para a pista de dança – ou para o ginásio, no Futebol Clube Barreirense – com os Império Pacífico. Quase chegada a insólita aparição de Cândido Lima para a apresentação do seminal Oceanos, a aula de ginástica foi breve e usámos as sapatilhas antes para correr até à Biblioteca Municipal do Barreiro. Para nossa infelicidade, à hora inicialmente marcada no programa a peça estava a terminar, já que o cancelamento do concerto da actuação de Ricardo Rocha provocou uma alteração inesperada de horário (divulgada nas redes sociais, é certo). Ainda assim, os minutos finais de Oceanos deram-nos uma breve amostra da composição electroacústica e acusmática em Portugal, algo infelizmente raro fora de lugares e acontecimentos de nicho.
Pouco tempo houve também para escutar o piano austero de Kaja Draksler na Escola de Jazz do Barreiro, visto que o concerto de Rafael Toral na biblioteca havia também sido adiantado. Talvez por muitos não saberem da alteração, o concerto acabou mesmo por acontecer à hora que constava no programa impresso, o que fez com que perdêssemos mais meia hora do que quer que estivesse a acontecer ao mesmo tempo. Contudo, a espera compensou e Toral brindou-nos com um dos concertos mais surpreendentes do festival. A viagem à lua particular do músico, inventor e artista sonoro português fez-se – além do teclado que o acompanhava – com a sua deslumbrante colecção de instrumentos: desde a mola que pulsava como uma pistola intergaláctica ao disparar de uma luz que interferia com o campo magnético em redor, criando ruídos presos na sua própria inércia; dos amplificadores alterados que produziam choros eléctricos mais emotivos que muitos mamíferos ao teremim modular que fazia a cama de estática para esta panóplia de sons.
Por entre as ruas do Barreiro, durante a tarde, ouviu-se ainda dois concertos no Largo do Mercado 1º de Maio. Primeiro, a pop quirky de Jimi Tenor, de flauta e sequenciadores na mão, com miúdos dançando e graúdos repousando nos bancos do jardim adjacente. Depois, o transe cénico e vermelho dos HHY & The Macumbas. O colectivo do Porto trouxe nas mãos e no corpo o novo Beheaded Totem, disco e concerto de um voodoo muito próprio, com tanto de sintético como de orgânico, que entra em nós e em nós se fixa, não mais fazendo do que nos agitar, agitar, agitar e entrar no ritmo sem de lá conseguir sair.
A noite ainda reservava algumas surpresas, tal como a substituição de Fret (Mick Harris) pelo solo do iraniano Mohammad Reza Mortazavi e o seu bem domado tombak. A ele juntou-se o alemão Burnt Friedman – munido de computador, Korg MS-20 e mesas de mistura – para formar o duo YEK, organismo minimal e prazenteiro, entre a discoteca contida e a meditação, impedida apenas pelo clarão de vozes que inundava a sala da Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense (SIRB) “Os Penicheiros” sem um fim à vista. Desilusão veio com Lotic, concerto medíocre para dormir que antecedeu o furacão de Linn Da Quebrada e amigxs, que despertou. Começando no choque e na gratuitidade, com taças de sémen a ser mexido com dildos e letras de pura e livre sexualidade, o concerto foi-se gradualmente tornando mais contido e sério nas palavras – aqui “contido” sendo um eufemismo, já que a corporalidade libertadora e militante era uma constante -, que se tornavam cada vez mais directas no protesto que comunicavam e na liberdade que advogavam, terminando com um tema dedicado à campanha anti-Bolsonaro (#EleNão, frase repetida como um mantra no refrão). Provocante e espampanante, a passagem de Linn Da Quebrada pelo Barreiro aqueceu para os dois últimos momentos do festival, no Edifício A4 da Baía do Tejo. Aí, houve casa cheia para John T. Gast, as janelas expirando o fumo para dar lugar ao ar quente dos ritmos da batida de DJ Lycox.
Ainda que a organização tivesse claramente feito o melhor em termos dos espaços que dinamizou e dos públicos diferentes aos quais revelou novos mundos musicais – nomeadamente, através dos concertos gratuitos durante a tarde no centro do Barreiro -, alguns factores fizeram desta edição do festival barreirense uma menos boa: são exemplos disso a condensação do cartaz em dois dias (aqui podem entrar razões económicas), que gerou sobreposições desagradáveis, alguma falta de comunicação nas alterações dos horários, o desrespeito de algum público pela música ou a imprevisibilidade dos cancelamentos. Ou isso ou temos vindo a ser mal habituados por este milagre de festival. Certo é que, no próximo ano, lá atravessaremos a ponte 25 de Abril novamente. Rumo ao som e à música, sem limites de qualquer tipo, sempre exploratórios, fascinantes e imprevisíveis.
Fotografia: Francisco Fidalgo