Otto está de volta. O caranguejo do Agreste vem repleto de angústia e sofrimento, mas para os ouvintes só dá prazer . Ottomatopeia é mesmo muito bom!
Otto é um nome incontornável nas minhas escolhas, sobretudo quando o que há para escutar é música popular brasileira. Incontornável e indiscutível, sempre na disputa dos lugares cimeiros das minhas preferências. Já assim era antes de Samba Pra Burro, o seu primeiro disco em nome próprio, quando andou em companhia da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A. Depois desses tempos de aparição do manguebeat, movimento essencial da contracultura musical do nordeste brasileiro (Recife, Pernambuco), Otto tem vindo a afirmar a sua particular visão artística a solo ao longo de já quase vinte anos. Compositor, instrumentista e cantor, Otto Maximiliano Pereira de Cordeiro Ferreira é um músico em eterno crescimento, incapaz de ceder a algo que não seja o que lhe dita a cabeça e os seus delírios sonoros. Contra tudo e contra todas as adversidades, o músico de Belo Jardim nunca desiste e vai em frente. Essa resiliência é uma das principais razões que estão na base do meu apreço pelos seus discos e pelo que ele representa no panorama atual da boa música que se vai fazendo no país do Carnaval. Acontece, entretanto, que o ex-caranguejo do Agreste está de volta, finalmente. E recomenda-se. Muitíssimo, até.
Chama-se Ottomatopeia, e nasceu cinco anos após The Moon 1111, que aqui no Altamont teve o devido destaque. Já não era sem tempo, e por isso a expectativa só poderia ser grande quanto ao seu regresso e sobre o conteúdo do que aí vinha. A primeira faixa que se conheceu foi “Bala”, e os ferimentos causados por quem se deixou atingir por ela foram fatais. Faltava, avidamente, ouvir as outras onze canções do oitavo longa duração de Otto, coisa que entretanto já se tornou pública. Vamos ao trabalho, então.
Voltemos a “Bala”, tema de abertura e de apresentação de Ottomatopeia. O título é de génio, diga-se, e a canção é certeira (como as balas bem disparadas) e mereceria ser passada nas rádios, coisa que não irá acontecer certamente, nem aqui nem no Brasil. Otto não toca na rádio. Bonita, cheia de balanço (aqueles batuques iniciais já dizem muito), mas quase baladeira ao mesmo tempo. Boa para dançar, melhor ainda para ouvir. É uma canção sofrida, uma canção “que dispara contra o tempo”, como também é resignado e pesaroso aquilo que Otto nos diz, cantando como nunca, cantando cada vez melhor. Sim, Ottomatopeia explora, em boa parte das suas letras, um ambiente de dor e de perda, à maneira do Romantismo do século XVIII e por isso não deixa de ser curiosa e pertinente a observação que li na página oficial de Facebook do cantor sobre a capa do disco, que lembra o famoso quadro “Der Wanderer über dem Nebelmeer”, também conhecido como “Viajante Sobre o Mar de Névoa”, do alemão Caspar David Friedrich. Pois, a vida artística de Otto parece eivada de romantismo nos tempos que correm. “Carinhosa”, canção que conta com a participação de Zé Renato (mais um nome injustamente esquecido, a par de tantos outros) dá bem conta do que dizemos. Não se canta impunemente versos como “Me para e olha / Me para e olha / Pra minha alma / Pra minha alma vazia”, sobretudo quando se trata de Otto, artista que não se esconde, que se revela totalmente. Há muito “mar revolto” (expressão de “Pode Falar, Cowboy”, uma das melhores faixas do álbum) neste disco, muita sombra, muita alma, embora se consiga perceber o rumo a seguir, o horizonte para lá da névoa. Até porque também há espaço para “misturar polca e baião / Pra ver no fim de tudo o que é que dá / Vamos misturar nossa emoção / Brincar, amar, amar, amar, amar”, como se canta em “Meu Dengo”, cover de Roberta Miranda que roça o tom brega que Otto gosta de explorar por vezes, e que aqui surge nas vozes de Otto, Roberta e Céu, esta última de forma quase indistinta, diga-se. Mas o rock também tem espaço neste trabalho. Ouça-se a guitarra de Guilherme Monteiro em “Atrás de Você” para se perceber o que digo. Bom riff, boa canção. O mesmo é válido para “Caminho do Sol”, outro exemplo claro de um tema marcado por um certo cinzentismo lírico bem presente em Ottomatopeia. O que canta o coro masculino, se dúvidas houvesse, dissiparia quaisquer interrogações: “O amor não é capaz / O amor não é capaz”. Outro momento interessante, nostálgico e de sabor retrô, surge em “É Certo o Amor Imaginar?”, na sua tranquila inquietude dancável. Mas há mais, que neste caso são os momentos menores do disco. Três únicos exemplos: a tecnobrega “Teorema”, mas sobretudo “Dúvida” e “Orumilá” que pelo estilo mais tonitruante que as une, as desvia um pouco do tom mais genérico e abrangente do álbum.
Valeu a pena esperar por mais este disco de Otto. Ottomatopeia pode até nem estar no mesmo patamar do kafkiano Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, mas supera o anterior The Moon 1111. De qualquer das formas, sobre uma coisa não tenho a menor dúvida: Ottomatopeia é o meu disco para o verão!