O Super Bock Super Rock 2017 é já passado. No último dia houve alguns momentos mágicos, e até a aura de Bowie desceu ao Parque das Nações.
O terceiro e último dia do SBSR de 2017 começou com sabor retrô, à maneira de Sérgio Mendes 66. No Palco EDP, Bruno Pernadas e a sua extensa prole (contando com ele, eram nove músicos a tocar e a cantar) davam início à apresentação dos seus recentes álbuns. Dois, para sermos precisos. Que maravilha ouvir quem sabe verdadeiramente tocar! Que prazer escutar pequenas pérolas com travo a passado, perdidas num qualquer verão dos anos sessenta! Aqui, o virtuosismo não é inimigo das boas canções nem do prazer que dá ouvi-las. Worst Summer Ever e Those Who Throw Objects at The Crocodiles Will Be Asked to Retrieve Them são já clássicos instantâneos. Preciosidades absolutas. Podem ser, ao mesmo tempo, objetos de culto e discos populares, assim saibamos entender essas obras com cabeça, tronco e membros. Basta saber escutar, não é preciso pedir muito. Apenas isso: escutar com os ouvidos abertos e o coração escancarado. Igualmente bom foi verificar que em palco havia gente que toca com Benjamim, Minta & The Brook Trout e You Can’t Win Charlie Brown. Muita excelência à nossa frente, portanto. Acabaram com “Galaxy”, o que se percebe. É que esta gente não pertence à nossa. Aterraram, tocaram e lá voltaram à sua wonderland satisfeitos da vida.

Silva começou com algum atraso e com problemas de som. A voz do homem de Vitória-Espírito Santo quase não se ouvia, abafada que estava pelos instrumentos. A sua pop escuta-se sem grande excitação. A tranquilidade que dele transparece reflete-se na música. Uma espécie de Céu no masculino. É a delicadeza que impera, mesmo nos momentos mais ritmados. Silva é um músico muito querido pela nata da MPB. A par do que faz com Marisa Monte, deusa grande do país do outro lado do Atlântico, Silva troca figurinhas com outras lendas e mitos do Brasil, como sejam Tom Zé e Gal Costa, para dar apenas dois exemplos. Mas era do recente Silva Canta Marisa que mais canções queríamos ouvir, embora o músico nem sempre nos tivesse feito a vontade. A pop que faz, já o dissemos, é simples, nada pretensiosa, mas mesmo assim não impeditiva de avançar para “Mistério do Planeta”, dos enormes Novos Baianos, simplificando-a ao máximo. Marisa Monte tardava, até que “Ainda Lembro” surgiu. Bonita cover, sobretudo se o tema original estivesse, porventura, esquecido numa qualquer esquina mais antiga da nossa memória. Mas não estava. Conhecemos bem a canção que soa cristalina na voz de Marisa, e já não tanto na de Silva. Mas isso pouco ou nada importou. “Infinito Particular” também se apresentou em versão mais mexida, mais volumosa e preenchida instrumentalmente. Até a caetaneante “Meia Lua Inteira” marcou presença. Uma coisa é certa: Silva sabe escolher repertório alheio. O público gostou, e percebe-se bem a razão. “Olha minha cara / É só mistério, não tem segredo” e está tudo dito. Não há aqui espaço para vedetismos. Para mais, Silva é nome de apelido bem português. Talvez seja também esse o segredo por detrás da comunhão a que assistimos entre músico e público.

TaxiWars é tudo menos dEUS. Não é de estranhar que assim seja, uma vez que são insondáveis os caminhos de Tom Barman. Começaram numa toada jazzística, mas ao terceiro tema alteraram a postura e surgiu uma primeira pitada de rock, embora munida de saxofone e contrabaixo. Abraçados que estavam o jazz e o rock, a fusão mostrou-se mais ou menos funcional, mas pouco mais do que isso. Percebe-se que deve ser um side project sem grande ambição para além da óbvia, que residirá no gozo pessoal do músico belga. Fomos dar, entretanto, um breve pulo até à pop saltitona dos Foster The People. Confirmámos o que já sabíamos e também o que suspeitávamos. Ou seja, continuam a fazer música para adolescentes, e não mostraram qualquer evolução com este registo discográfico mais recente. Mas tudo bem, o mundo pode suportá-los por mais uns aninhos. No problem.
Esperámos um bom bocado para o concerto de James Vincent McMorrow. Não se pode virar costas a alguém que desde criança diz ter o sonho de fazer música à maneira de Neil Young. Ainda bem que esperámos. Talento a rodos, voz personalizada e com elasticidade suficiente para enormes e quase infinitos falsetes, canções adultas, por vezes de uma fragilidade comovente, sobretudo quando mais próxima da folk. À nossa frente, mesmo junto ao gradeamento, uma rapariga de vinte anos chorava de pura emoção. Isto de ver boa música ao vivo tem destas coisas bem gratificantes… Com três discos às costas, e após comparações mais ou menos descabidas a propósito da música que ele e Bon Iver fazem, o que nos pareceu foi bem outra coisa. Na Irlanda, entre outras, há esta voz muito singular, angulosa, fugidia, que soa maravilhosamente. Começou por dizer que estava encantado por se apresentar pela primeira vez em Portugal, mas parecia ser “prata da casa” há bastante tempo, tal a forma tranquila com que se apresentou e foi recebido. Muita gente a ouvi-lo, o que é ótimo sinal. Ainda se pode acreditar num futuro cheio de boa música.

Ainda todos nos sentimos um bom bocado órfãos de Bowie. Ainda não lhe perdoámos ter-se transfigurado em black star há coisa de ano e meio. Por isso, poder senti-lo à nossa frente, ainda por cima surgindo num português açucarado como é o de Seu Jorge, foi uma experiência fantástica. Ziggy foi o primeiro a entrar em cena, espalhando stardust por todo o lugar. Depois, uma vez que o estatuto camaleónico assim exigia, chegou “Changes”. O que dizer de tudo isto? É difícil escolher as palavras, uma vez que é de sentimentos que falamos, e esses são anteriores às expressões que usamos aqui ou em qualquer outro lugar. Enfim, “Rebel Rebel” em “onda zen” apareceu para que a nostalgia fosse ainda maior, desta vez em tom de bossa nova e não de rock. Depois veio “Starman” e foi um arraso interior, obrigando-nos a recordar tantos e bons momentos passados a ouvir o tema original. Ficámos a saber que a versão de “Lady Stardust” foi inspirada na humildade e no profissionalismo que Kate Blanchett demonstrou na rodagem do filme The Life Aquatic, de Wes Anderson. Seguiu-se “Rock n’ Roll Suicide” com alguns tiques típicos das canções da Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos. Até que, parecendo vir do nada, iniciou-se a contagem “five, four, three, two, one…” é lá fomos nós, “lift-off”, pelo espaço fora, até Marte, sempre ao comando de Pelé dos Santos. O Major Tom lá de cima deve ter gostado do que ouviu. Por nós, ficaríamos em trânsito durante “Five Years”.
Depois de tão intensas emoções bowieanas, de nada valeria continuar pela noite dentro. Prescindir de assistir a Fatboy Slim quase nos pareceu uma questão de honra. Não se pode passar da veneração à vida loca do cabeça de cartaz inglês sem se pagar um determinado preço. Para mais, há que honrar os verdadeiramente grandes, por isso virámos a tabuleta para closed sem qualquer hesitação. Até para o ano, Super Bock Super Rock!
Texto: Carlos Vila Maior Lopes || Fotografia: Francisco Pereira