À semelhança do ano passado, 2015 voltou a ser um ano de enorme riqueza na música feita em Portugal. Riqueza de conteúdo – belíssimos discos nos mais diversos estilos – e riqueza de quantidade – com um fluxo constante de edições ao longo do ano. Somos forçados a repetir o que dissemos em 2014 – estamos a viver uma era de ouro na música nacional, da qual havemos de continuar a falar durante décadas.
Nos últimos tempos temos também assistido a um renovado interesse em cantar na língua mãe (depois de vários anos em que isso era mal visto) e, na nossa amostra de 10 melhores discos do ano, 9 são cantados em bom português. No período que vivemos, é ainda de saudar a miscelânea de gerações – enquanto os novos vão irrompendo com estrondo, os mais experientes têm encontrado forma de se manter interessantes, e não andam só a viver à sombra da glória passada.
Eis, então, os 10 discos nacionais preferidos pela equipa Altamont!
10.Irmãos Catita – Portugal dos Pequenitos
O que Portugal dos Pequenitos nos traz são 19 músicas, muitas delas já conhecidas de quem os acompanha ao vivo. Os temas são os do costume, felizmente: Portugal, – falso grande e verdadeiro pequeno -, obsessão sexual (com taras variadas como a bestialidade), saudosismo colonial, surrealismo, teclados foleiros, coros ridículos, asneirada e muita santa idiotice. O álbum ouve-se como um todo, sem grandes tempos mortos. Se a música é mais banal, a letra não nos deixa desligar da certeira parvoíce da mensagem, mas em muitos casos temos o melhor dos dois mundos. É mais um tomo, ainda por cima raro, da delirante história deste intelectual brejeiro e subversivo, que debaixo da capa da idiotice e da javardice (elogios sentidos e agradecidos) , vai fazendo do melhor humor e da mais esfuziante música que temos em Portugal.
9.Aldina Duarte – Romances
Relação de faca e alguidar narrada ao longo de 14 fados sublimes, num álbum duplo desmesuradamente ambicioso. No segundo disco, a maior ruptura sónica a que o fado assiste desde Com Que Voz. Aldina tem toda a Emoção na voz, tem todo o Fado nos seus fados, mesmo que soe como nada que tenha sido feito no género.
8.Márcia – Quarto Crescente
Quarto Crescente é claramente um passo em frente em relação ao material publicado pela compositora / cantora desde 2009. Devagar, mas sempre de forma segura, Márcia foi ganhando o seu espaço cá dentro, e agora, sobretudo com o disco deste ano, já lá fora, no Brasil, há quem se renda à sua maneira límpida de cantar e de compor. Em Quarto Crescente há mais mundo, há maior segurança (talvez menor insegurança seja ainda melhor expressão para o que penso), há maior apuro e detalhe. A melancolia, a solidão, o charme das suas letras e composições estão aqui depuradíssimas, mais até do que em qualquer dos discos anteriores.
7.Medeiros/Lucas – Mar Aberto
Medeiros, Carlos Medeiros, vozeirão imponente, foi autor de um disco de culto – O Cantar na m’incomoda – nos anos 90, à volta do cancioneiro tradicional dos Açores.
Lucas, Pedro Lucas, vários anos mais tarde, pegou nesse disco e meteu-o numa misturadora, sob o manto O Experimentar Na M’Incomoda, coberto de electrónica e loops a interagir com o canto ancestral. Depois de dois discos com o Experimentar, Pedro Lucas cruzou-se com Carlos Medeiros começaram a trabalhar, de raíz, num disco conjunto. Pedro mais dedicado à parte musical, Carlos debruçado na dimensão lírica. Esta lírica é retirada de textos clássicos – de Cervantes e seu Quixote, a poetas açoreanos menos conhecidos no continente, como Armando Côrtes-Rodrigues, passando por ladaínhas insulares transmitidas de boca em boca e sem autor conhecido. Medeiros/Lucas é, portanto, o projecto mais interessante da actual música portuguesa. Um caldeirão enorme onde cabe um sem número de elementos e ingredientes que remetem para uma portugalidade anterior à nacionalidade, quando esta terra era populada por tribos.
6.Basset Hounds – Basset Hounds
“Arabica” tocaria Xerazade se fosse moça dos anos 90, findas as mil e uma escutas pedir-lhe-ia o rei um bis. Faz-se em “Marr” o que fariam os Smiths se se aguentassem até a sua Manchester virar Madchester e o banho-ruído rosa lhes lavasse a cara em 1991; mas destino o quis assim, que os Basset Hounds tocassem isso por eles, 24 anos metaforicamente volvidos. É atrelada aos Crazy Horse que corre a caravana de “Young”, olhe o passageiro pela janela do transporte e só verá as paisagens de Against Perfection e Nothing. Nas águas sónicas tremulosas de “Oscilations” reverbera o grandioso Oshin, epítome da fusão indie rock/shoegaze. Mais que incendiárias revisitações de estilos ou influências, as canções do álbum de estreia dos Basset Hounds são emaranhados pequenos abraços de gente que nunca se abraçaria – imposição geográfica, temporal ou ideológica preponderante. Desta matéria são feitos os grandes álbuns rock. Basset Hounds é um marco na história breve do shoegaze português. Sempre Loveless, mas para amar.
5.GNR – Caixa Negra
O que fazer quando já tudo se fez, já a credibilidade é uma marca identitária, o respeito é global, o repertório é do melhor que a pátria pariu? A retirada é uma opção, o viver do passado outra, mas a melhor de todas é viver, continuar, escrever novas cantigas e prolongar o culto: os GNR fizeram-no com sapiência em Caixa Negra, melhor disco do grupo em longos anos. A escrita de Reininho continua afiada e pertinente como sempre, mas há um novo fôlego melódico que nos devolveu à casa de partida. Os GNR continuam a ser uma das melhores bandas portuguesas de sempre.
4.Capitães da Areia – A viagem dos Capitães da Areia a bordo do Apolo 70
Que os Capitães da Areia já sabiam fazer óptimas melodias, todas elas Verão, pop e gelados fresquinhos, já o sabíamos desde O Verão Eterno dos Capitães da Areia. O que não sabíamos, e que agora não podemos ignorar, é que eles não são só isso (e já seria bem bom). O disco A Viagem é, todo ele, uma gigantesca e fenomenal homenagem aos anos 80 portugueses. É um disco conceptual, no sentido em que conta uma história. É, na boa tradição dos álbuns conceptuais, uma viagem no espaço, que começa com a transformação do Apolo 70 numa gigantesca nave. A partir daí, aí vão eles, e nós a correr atrás, entusiasmados desde o primeiro momento em fazer parte desta viagem intergaláctica. Muito nos remete para 10.000 anos depois entre Vénus e Marte, e não falta uma simpática participação falada do mestre José Cid, ele próprio uma estimada relíquia dos anos 80, não necessariamente pelos melhores motivos musicais. Mas desengane-se quem esperar aqui um disco de rock progressivo/sinfónico. O cosmos dos Capitães da Areia é feito de sintetizadores pop até à medula, não há solos de guitarra nem demonstrações de virtuosismo. E ainda bem, porque a força desta banda é outra: as melodias pop simples e viciantes, e uma frescura que nos faz ter saudades de ser adolescente.
3.Allen Halloween – Híbrido
A Árvore Kriminal, de 2011, tinha deixado o aviso: havia uma voz diferente, única até, no panorama do hip-hop português. Quatro anos depois, a voz regressa e, ao terceiro disco, traz-nos um documento essencial para o Portugal de 2015. Híbrido é isso, tudo isso, e muito mais. Esta é a terceira edição de Allen Halloween, de seu verdadeiro nome Allen Pires Sanhá, a voz do subúrbio, a voz do gueto, a voz de um dos países que fazem este país. Halloween fala-nos de tudo isso, de racismo, de vida criminal, da busca da redenção, da falta de oportunidades, da desigualdade, da luta diária, da loucura que a pobreza traz. O que ele traz de novo face ao panorama hip-hop nacional é que o faz com a voz mais idiossincrática da sua geração. Ninguém rima como ele, ninguém entrega as palavras desta forma, arrastada e aparentemente alcoolizada, com uma autoridade maior que os seus 36 anos.
2.Pega Monstro – Alfarroba
As Pega Monstro não eram apenas das bandas mais promissoras em solo luso: eram já das mais interessantes nestas paragens. Depois de um EP e um longa duração homónimo de canções especialmente interessantes, chegou-nos agoraAlfarroba. Este disco é e não é a confirmação da banda no panorama musical português: é-o porque é efectivamente dado um passo em frente, sobretudo ao nível da produção, mas não o é porque o essencial – um rock difícil de igualar, de identidade própria, conciliando desafio punk e melodia apurada – já lá estava; o que tínhamos antes, portanto, não eram indícios promissores, mas uma obra que já valia muito em si mesma (oiça-se por exemplo do anterior disco a inaugural “Carocho” e a brilhante “Homem das obras” – como ficar indiferente a isto?). Alfarroba é mais uma prova que a boa composição pode perfeitamente andar de mãos dadas com a ambição, sem que com isso se perca nada de relevante na atitude e espírito rock marginal, absolutamente contracorrente, de que as Pega Monstro (que aqui a sabem clarear) não abdicam, e de que a Cafetra, a editora que formaram, tem também sabido preservar.
1.Benjamim – Auto-Rádio
Auto-Rádio é uma declaração de amor à pátria ferida, revelada em mil pormenores, desde a escolha da língua-mãe até aos temas só nossos (como o trauma da guerra colonial e a queda do império), passando pelo tributo assumido a alguns músicos portugueses, e desembocando no próprio conceito que une o disco: a ideia de uma viagem pelas estradas nacionais empoeiradas, numa provecta carrinha que já conheceu melhores dias, sempre ao sabor do fiel botão do rádio, a banda-sonora do Portugal multifacetado do século XXI. Que bem que sabe nos refastelarmos na vetusta Volkswagen de Benjamim, ouvindo pelo rádio o Fausto a jogar bilhar com o Marco Paulo e o Zeca Afonso a apalpar as mamas à Lena d´Água (o atrevido). Porque se há uma ideia que define Auto-Rádio é a de que não se pode ser português só pela metade. É preciso amar com a mesma intensidade as casas do Siza e as varandas fechadas a alumínio, os discos do Carlos Paredes e as cassetes do Quim Barreiros nas bancas das feiras, os filmes do Pedro Costa e o Eládio Clímaco no festival da canção, os livros do Gonçalo M. Tavares e as gajas nuas no Correio da Manhã, as esculturas de João Cutileiro e os piços não tão estilizados dos bonecos das Caldas. Tudo isto é Portugal, tudo isto existe, tudo isto é fado. Impuro mas belo, é esse o segredo escondido de Auto-Rádio. Quando o apolítico se torna empenhado, quando o exilado regressa a casa, quando o estrangeirado volta a falar português – com a língua, com a cabeça, com o coração, com os pés-, o melhor álbum nacional de 2015 acontece. Disco bonito, pá.