É preciso tempo e disponibilidade para ouvir o que nos propõe Olivia Combs. E se tempo e disponibilidade é muito do que nos falta nos tempos que correm, então serenem os passos e os corações e ponham a rodar Santa Olivia Partes.
Discos como Santa Olivia Partes nunca se ouvem. Vão-se ouvindo. Note-se que o emprego do gerúndio dá conta exata do que pretendemos dizer: prolonga-se indefinidamente no tempo, e é esse o maior segredo que o álbum guarda – não é um disco para agora, mas para sempre.
Não são fáceis de arrumar, os discos em que alguma improvisação (ou mesmo mais do que essa duvidosa quantidade) é, de facto, a essência dos mesmos. No entanto, não é exatamente isso que acontece em Santa Olivia Partes. Percebe-se que algo orgânico volta, regressa ao que já houve, repete-se, ressurge para dar forma longilínea aos quarenta e tal minutos da sua própria duração, fazendo do álbum um corpo com cabeça, tronco e membros sonoros, assim como de silêncios. Depois, há a parte poética dos títulos dos dois primeiros temas (“Atrás das árvores, a lua desvanece lentamente” e “a chuva caiu dos meus olhos e tornou-me uma nuvem mais branca”), que em tudo se afastam dos prosaicos nomes atribuídos às últimas duas composições (“Para o vizinho Zé Carlos” e “Chegámos! Meninos! Embora!”). Equilíbrio, acima de tudo, até na escolha criteriosa (nada improvisada, portanto) das palavras. E assim como nunca se entendem os bons poemas até ao fim, é bom saber que o mesmo também acontecerá nas outras artes. Se está à espera, neste texto, de perceber o que significa musicalmente Santa Olivia Partes, então embarque por sua iniciativa na jornada que o álbum propõe, não se fiando em nós e no que está a ler neste preciso momento. Faça-o de espírito aberto, tendo em conta que partir e chegar são apenas lados de uma mesma viagem (parafraseando livremente Milton Nascimento), e que o que desse transporte de um lugar para outro fica, será sempre uma pequena parte que dela conseguirmos reter. O que nos pode, eventualmente, escapar no rumo sequencial do disco (a tal “pedra no meio do caminho”, como disse Drummond de Andrade) será um ganho, não uma perda. Perdermo-nos é o início da arte do reencontro, como é sempre bom não esquecer. Não importa se pouco ou se um pouco mais do que isso. O que fica é aquilo que parece ter sido feito para nós, como se fôssemos o Zé Carlos, esse mesmo, o que se encontra vizinho de Olivia Combs.
Por vezes, em discos minimalistas como este, tentamos aplicar sobre eles as receitas que aplicamos aos outros, aos que se revelam descaradamente. Erro crasso, de principiante, até. Estes discos são especiais, exigindo dos ouvintes uma dose acrescida de atenção e afeto. Eles querem ser nossos amigos, e “coisa mais importante no mundo não há”, como bem sabemos.
O grande (e esquecido) poeta Reinaldo Ferreira, escreveu um poema que traduz muito do que aqui queremos dizer: “Mínimo sou, / mas quando ao Nada empresto / a minha elementar realidade, / o Nada é só o resto”. O poema transcrito, imagine-se, chama-se “O Ponto”, pelo que título mais premonitório seria quase impossível. É mesmo esse o ponto de Santa Olivia Partes. Partir do caráter precário e vazio do “Nada”, para lhe infundir a totalidade minimalista dos sons desenhados, das paisagens sonoras das ruas e dos elementos etéreos que dificilmente encontram espaços e lugares em álbuns que estão interessados na exposição rápida e imediata dos seus objetivos. Este é um disco lento, um disco que bem poderia ser um louvor à lentidão dos instantes demorados, até porque esses são os que ficam, os que permanecem mais tempo em nós.
As artes fundem-se bem mais do que imaginamos. E os leitores ou os ouvintes, aqueles que as apreciam e vão aos seus encontros, prolongam-nas, fazem delas os seus íntimos lugares de repouso e satisfação. Isso demora tempo, como se disse, exige degustação lenta, como sabiamente soube notar Ramón Gómez de La Serna, numa das suas greguerías (“Como daba besos lentos duraban más sus amores”). É tudo isto que temos em Santa Olivia Partes, um punhado de sons visíveis e esculpidos no ar de quem o ouve.
https://edicoesumbria.bandcamp.com/album/santa-olivia-partes