O Gajo, cansado de tocar sozinho a campaniça, foi a Benfica na companhia de dois grandes do jazz: José Salgueiro na percussão e Carlos Barretto no contrabaixo. O pretexto foi uma homenagem ao génio de Carlos Paredes. Uma noite bonita, o que não admira, com tanto talento por metro quadrado…
Na passada sexta-feira, o Altamont foi até Benfica assistir a um dos dois concertos que a Junta de Freguesia organizou para comemorar o 98º aniversário do enorme Carlos Paredes.
À medida que a sala centenária, cujo nome homenageia o mestre da Guitarra Portuguesa, se vai enchendo com um público de várias gerações, idiomas e estilos de indumentária, vamos podendo apreciar um cenário cheio de bom gosto e de apontamentos deliciosos que vão sendo integrados ao longo de um concerto cujo alinhamento foi dominado pelo disco Subterrâneos.
O último trabalho de longa duração data de 2021, tendo sido gravado pelo trio ainda em pleno contexto pandémico, é profundamente marcado pelo processo de reflexão interior facilitado pelo isolamento e pelas referências literárias que têm vindo a inspirar João Morais. Aliás, o Gajo mostra-se muito comunicativo ao longo de todo o espetáculo, apresentando os temas e contando histórias … fazendo-nos rir e, sobretudo, sorrir!
Assim que as luzes da plateia se apagam e os músicos se instalam, acende-se o velho rádio ao lado do Gajo, deixando-nos perceber uma velha locução por detrás da estática e abrindo uma fresta para os primeiros acordes de “O Capitão é o Mar”, um tema instigado por um poema do poeta catalão Jesus Lizano, que nos lembra que é uma ilusão o homem pensar que domina a natureza. O Gajo parece usar a campaniça para carregar a mágoa do fado, enquanto Barretto maneja o seu arco ora para sublinhar tal gravidade, ora para ajudar a marcar o balanço das ondas que se desfazem nos pratos de Salgueiro.
Segue-se “Gato Pardo”, onde a liberdade da campaniça, o dedilhar do contrabaixo e o balaço da percussão nos mandam fechar os olhos, abanar a cabeça e sonhar com solitárias divagações noturnas pelos telhados de uma velha cidade mediterrânica. Em “Electro Santa”, inspirada pelo poeta Artur Rockzane, o trio carrega-nos em harmonia até ambientes mais celtas, como se déssemos um salto dos telhados de Lisboa ao campo de estrelas da Galiza.
De volta a Lisboa, a uma “Cidade Fantasma” em tempos de pandemia. Ao início, a percussão apoiada nas batidas secas do arco de Barretto nas cordas do contrabaixo parecem mandar a campaniça andar pela calçada, mas rapidamente ela se liberta, metendo-se no carro e vagueando pelas ruas vazias da cidade.
Segue-se ”Os Corujas”. O Gajo fala-nos de histórias de conspiração, o ritmo acalma e traz-nos de volta à calçada escura, e os acordes da campaniça indicam-nos o caminho pelas vielas apertadas da cidade até à parte final do tema, onde os músicos brincam com os silêncios, como nos estivessem a querer contar algum segredo.
O Gajo introduz o próximo tema “Morfeu”, falando-nos do sonho e da independência artística como uma das principais influências de Carlos Paredes na sua carreira musical. A toada é mais calma, viajamos no nosso sonho ao Norte de África e o público deixa-se encantar e bamboleia nas suas cadeiras.
De regresso ao bairro de Benfica – onde João Morais e José Salgueiro cresceram – o Gajo fala do seu passado punk hardcore e de algumas das personagens que marcaram esses tempos e aproveita para contar a origem do próximo tema, a luta que imaginou entre “Bailão e Pedro Cigano” – os rufias mor da altura. E porque, como afirma, músicas de amor há muitas, voltamos a cerrar os olhos – e quem sabe, os dentes e os punhos – para desta vez imaginarmos uma cena de pancadaria sonorizada pelo trio. A campaniça acelera, puxa pelo ritmo e Salgueiro parece apontar todos os socos com vassouradas no seu velho prato já torto e batido.
Depois de Salgueiro e Barretto desligarem os seus candeeiros e recolherem aos camarins, o Gajo senta-se na boca do palco e partilha a bela e calma “Predador de Sonhos”. Ainda só, volta ao seu lugar, contando-nos como conheceu a viola campaniça e relatando-nos a importância de conhecer artífices e outros tocadores, introduzindo assim “Chuva Oblíqua” – baseada num poema de Fernando Pessoa. João Morais fala-nos então de um paralelismo entre os heterónimos do poeta e as diferentes personalidades de cada campaniça. “Chuva Oblíqua” é tocada a três vozes, a três campaniças – a do Gajo, a de Tó Zé Bexiga e a de Thomas Attar Bellier, que, como por magia, aparecem na velha televisão para tocar um tema belíssimo iniciado num jogo de parada e resposta entre as três campaniças, finalizando num rico e harmonioso ensemble.
Ainda sobre as vozes distintas de cada campaniça, enquanto Carlos Barretto volta ao palco, o Gajo troca de viola para voltar a agradecer e homenagear Carlos Paredes, parafraseando os acordes de “Canção”. É então altura para Salgueiro voltar ao palco e reacender o seu candeeiro. Os dois próximos temas (aliás, como o anterior Bailão e Pedro Cigano) vêm da Estação do Rossio (de 2019) e, como tal, foram compostos originalmente apenas para a campaniça do Gajo e agora rearranjados para o trio, que agora ataca a dança de acordes do “Varredor” num bonito jogo de harmonias.
O palco enche-se seguidamente com a impressionante presença e voz de José Anjos para uma interpretação fantástica de “O Caminho é o Poema”, que deslumbra o público desde o seu início, onde a voz do poeta é deixada à solta apenas com a companhia de alguns apontamentos soltos e discretos de cada um dos músicos, ao que se segue o soltar da cavalaria e se vai sentindo um crescendo que culmina num momento em que o Gajo se junta a José Anjos no micro e convida o público a entoar umas notas com os músicos.
O espetáculo aproxima-se do fim e João Morais dirige-se ao canto do palco onde uma garrafa de vinho e quatro copos fazem companhia a uma velha fotografia de Carlos Paredes. Chegou o momento do brinde aos 98 anos do mestre Paredes.
Ao que se conta, Luís de Camões teria uma faceta arruaceira ilustrada pela alcunha “Trinca fortes”, tema que arranca a todo o gás, com um contrabaixo bamboleante e a campaniça a assumir laivos de guitarra elétrica pela utilização dos pedais.
A noite já vai longa mas o público não está rendido e pede mais. E ainda bem!
O trio termina o concerto com a belíssima “A Negra Fúria Ciúme”, onde o trompete de José Salgueiro assume o papel principal entrelaçando as robustas linhas do contrabaixo com o filigrana da campaniça.