Ao terceiro dia, o fim! Uma Primavera de três dias que valeu pelo encanto da diversidade.
O terceiro e último dia abriu com Núria Graham no palco Super Bock, e abriu bem. Uma cara bonita, uma enigmática pose e uma guitarra (já ontem referimos isto) são sempre irresistíveis, e deu para começar a fazer crescer saudades dos três dias muito bem passados na Cidade Invicta. Para mais, o que tocam (ela e a banda) é bonito, tranquilo mas sem perigo de poder fazer alguém dormir ao sol de meio da tarde. Nuria chegou de Barcelona, mas o seu som em nada se parece com bandas catalãs como Love of Lesbian, por exemplo. É mais um pastiche da escola de Laura Marling e de outras vozes femininas do atual panorama musical que vão crescendo em todo o lado. Agradável, sem dúvida, e um bom arranque espanhol para o dia de Portugal.
Logo a seguir, Songhoy Blues. Grande balanço deste quarteto africano. Baixo pujante, guitarra a preceito, bom para mexer as ancas. World music com toque pronunciado a blues e a rock. É inevitável não pensar, mesmo que por exagero, em Fela Kuti. Ritmos tribais com guitarras altas e o espetáculo está feito. O público, principalmente o feminino, em plena loucura. As loiras nórdicas não resistem à música de pele morena. Minutos depois de terem começado, os Songhoy Blues já eram os reis do palco e do recinto. A linguagem musical é mesmo a melhor arma para a felicidade! Mas era tempo de rumar para o palco Super Bock, uma vez mais. A garganta ia ficando seca e era preciso repor líquidos. Para além disso, era também necessário garantir um bom lugar para a enorme Elza Soares que estava quase a chegar do fim do mundo.
O que mais podemos dizer d’A Mulher do Fim do Mundo? Tudo soará a repetido, por isso sejamos simples e diretos: foi a rainha da tarde, da noite, do dia final do Festival! Não há como fugir a esta evidência. Em menos de meio ano, o Altamont assistiu a três concertos de Elza Soares, todos logicamente iguais na formatação (as razões são tão conhecidas e óbvias que não carecem de explicação), mas todos superlativos no sério conteúdo que apresentam: é um show que parece vindo de uma “força estranha” (sim, a expressão entre aspas é uma referência propositada) que resulta da dor e do sofrimento de quem na vida sempre se deparou com sofrimento e dor. Este fim do mundo de onde Elza Soares vem, é mesmo o nosso mundo, mas que parece tão distante que quando interiorizado, tem forçosamente de doer. Mas há sempre um depois, há sempre uma esperança que a música sabe transmitir como ninguém. Até porque ainda hoje se sabe que “a carne mais barata do mercado” é a carne humana, embora quase sempre “negra”. Uma vergonha que Elza Soares sentiu e viveu demasiadas vezes. Ontem vivemos tudo isso com ela, uma vez mais. Bem-hajas Elza, bem-hajas Kastrup, que fizeste tudo isto acontecer. O resto é samba de quem “sacode a poeira e dá a volta por cima”.
Do samba ao rock foi coisa de dez minutos, o caminho de um palco para outro. Os The Growlers são uma banda cool e Brooks Nielson contribui tremendamente para isso. A escola é a do Beach Goth, movimento festivaleiro que anualmente foram realizando durante alguns anos. Quanto ao resto, há contágios indisfarçáveis no som que fazem. Arctic Monkeys é, talvez, o mais evidente, mas também há neles algo de surf rock, embora já não de forma tão notória. Curioso foi o facto de tocarem algumas das canções dos seus últimos álbuns numa toada ligeiramente mais calma, embora nunca perdendo o nervo que definiu toda a atuação. Talvez merecessem um horário mais noturno. É que a horas mais tardias, o rock tem sabor mais etílico, e isso poderia ter ajudado à coisa. Houve sobriedade a mais, portanto.
At last, um power trio! Gostamos do económico formato. E quando no baixo está Mitski, estreante em Portugal, ainda melhor. No alternativo palco Pitchfork tivemos direito a uma hora da P.J. Harvey nipónica, que ainda no ano passado nos ofereceu o fantástico Puberty 2, o seu quarto disco de carreira. Misturando a força da guitarra, do baixo e da bateria com um canto que nos pareceu, a espaços, ter alguns problemas de afinação, Mitski foi desenrolando as suas canções com a simpatia credenciada do sol nascente, confessando, entre outras das suas particularidades, que a comida é a coisa mais importante da vida, e que por isso adora Portugal, dando-nos os parabéns pelo dia que estávamos a viver. O tema “Best American Girl” foi, naturalmente, muito saudado pelo público que tinha à sua frente, bem numeroso, aliás. Tudo bem rasgadinho, tudo bem rock n’ roll.
Depois de uma vertente mais arty da menina que veio do oriente, a onda mais animada dos Metronomy acabava de dar à costa. Mais e mais festa e um mar de gente a dançar. A noite era para amar! Para a maioria terá sido bonito ver a força do nu-disco a mostrar as suas garras bem salientes. Para nós, nem tanto. Ao quinto disco, o grupo inglês conta com uma imensa multidão de fãs, e ontem isso notou-se. A banda de Joseph Mount esteve à altura do estatuto que foram granjeando, embora com algum hype à mistura, e foram vários os temas de Love Letters e Summer 08 que se fizeram ouvir. Muito competentes na hora de fazer mexer as ancas, o verdadeiro prazer foi assistir à prestação da baterista Anna Prior, um espetáculo de elegância dentro de um concerto com muita luz e espalhafato, mas sem grande conteúdo. Depois desta afirmação, talvez seja melhor procurarmos abrigo, mas é o que pensamos verdadeiramente. Paciência. O tempo corria e tínhamos de chegar a horas para ouvir Weyes Blood. Lá nos metemos a caminho, então, por entre “montes e vales”.
Mais uma voz feminina ao microfone. A noite era delas, definitivamente, vindas dos quatro caminhos do mundo. Weyes Blood começou a desfolhar os seus encantos através da seguríssima Natalie Mering e das suas intimistas composições. Alguns ecos dos primeiros discos dos Cowboy Junkies soaram nas nossas cabeças, embora indefinidamente, a espaços. A toada é quase sempre a mesma, uma espécie de primado de melancolia. Mas a garota é bonita e tem charme dengoso, o que é sempre um ganho nestas coisas da arte de estar em palco. Mas entendamo-nos: gostámos do concerto, sobretudo quando as canções penderam para uma vertente um bocado mais “weird” e “freaky”, expressões que a própria Natalie Mering utilizou. Nota para uma cover de “Vitamin C”, dos enormes CAN.
A parede de amplificadores revelava o começo, a qualquer momento, do concerto de Japandroids. O duo canadiano subiu ao palco Super Bock pelas 23h30 e abriu logo com “Near To The Wild Heart of Life” tema que dá nome ao novo trabalho. Como uns Death From Above 1979 caseiros, Brian King e David Prowse meteram tudo no prego e, desde o início da ravina do Parque da Cidade até às grades que beijam o pit, toda a gente ouviu um dos sons mais coesos que por ali se ouviu. Apesar de algumas falhas de voz e improvisação, mais pela emoção e pela interpretação emotiva e enérgica no limiar da loucura, Japandroids querem-se toscos e nunca demasiado polidos, tão honestos como quando começaram em festas organizadas por amigos. E foi isso que passou para o público, uma grande reunião de amigos que relembraram as festas de garagem dos anos 90.
Relembraram várias vezes que era o último concerto da tour e agradeceram constantemente a presença de todos, no entanto, a presença de demasiada música nova fez com que perdessem alguma da audiência que ansiava por êxitos antigos. O êxtase chegou com “Younger Us” e terminou em delírio com “The House That Heaven Built” a fechar o concerto. E a colocar a questão, serão os Japandroids alguma vez capazes de igualar, ou superar, Celebration Rock?
Ainda houve tempo para dar uma perninha aos Make-Up, banda de culto, e por isso não foi de estranhar a presença de Luxúria Canibal entre a pequena multidão que assistia ao concerto. Verdadeiro homem de palco, Ian Svenonius ainda não perdeu uma das suas imagens de marca, os berros e guinchos desassossegados com que vai pontuando as suas composições. Com um discurso irónico-místico sobre lua cheia e maternidade, o rock excêntrico dos Make-Up marcou boa presença, e para muitos terá sido uma oportunidade rara de os ver ao vivo. Os Make-Up são uma banda diferente, já o sabíamos, mas Ian Svenonius não deixou de referir que enquanto as outras bandas querem “sex”, eles querem “orgasm”. Assim mesmo, sem pestanejar. Dá para avaliar o calibre da fritura. Bom espetáculo, sem dúvida. O prémio da performance de todo o festival foi para os Make-Up! Enormes!
Notas breves e finais para Aphex Twin, o esteta do drum and bass mais puro e orgânico de que há notícia. No meio do enorme e torrencial espetáculo de luzes, quase não se dava pelo irlandês em palco. Por vezes gerou-se a tempestade e o caos, noutras algum assomo de dança inteligente e certeira. Ao nosso redor era mais a gente que falava do que aqueles que verdadeiramente estavam interessados no que tinham à frente dos olhos e dos ouvidos. Sinal de fim de festa, provavelmente.
O concerto de Black Angels começou com alguns minutos de atraso, devido a problemas técnicos com as luzes de palco e, muito provavelmente, nos vídeos de apoio ao espetáculo, muito associados às atuações dos Black Angels, inspirados no artwork do próprio Christian Bland, algo alheio à própria banda que pediu desculpa mal pisou o Palco Ponto. A ansiedade era grande e percebeu-se, pelas conversas que ouvia à volta, que muitos estavam no festival só para os ver. Mas a viagem psicadélica começou e, como pareceu ser moda neste Primavera, com “Currency”, o tema que abre o novo disco Death Song. Trabalho que, segundo Alex Maas e Christian Bland, em entrevista ao Altamont, confessaram “agora não temos de explicar mais vez nenhuma de onde vem o nome da banda” (The Black Angel’s Death Song, tema do álbum The Velvet Underground & Nico). Num alinhamento arriscado, os Black Angels tocaram Death Song na íntegra mas, a competência é tão assustadoramente perfeita que o público se manteve coeso até ao momento esperado por muitos. “Young Men Dead” foi um dos momentos do certame, numa viagem cósmica geral debaixo de uma lua brilhante, numa atmosfera quase extraterrestre. Mathew McConaughey teria gostado, certamente, como tantas vezes assume em entrevistas, o poder do tema no último capitulo de True Detective. E como grandes detectives dos primórdios do rock psicadélico dos anos 60, fiéis herdeiros de 13th Floor Elevators, os The Black Angels não falharam nem por um segundo e deram um dos melhores concertos do Festival.
Assim se fechou a edição de 2017 do NOS Primavera Sound. Houve rock, pop, hip-hop, rap, samba, eletrónicas para todos os gostos. Momentos muito bons e outros dispensáveis, como sempre acontece. Gostámos de andar por lá, sobretudo na esperança de que tenham gostado de passar os vossos olhos por aqui. Até para o ano.
Texto: Carlos Lopes com Vera Rodrigues || Fotografia: Francisco Pereira
*fotografias em actualização