
Com o segundo dia encerrado, o NOS Alive teve muito para ver e ouvir. Desde os brasileiros Soulvenir aos australianos Jagwar Ma (banda protegida pelos Tame Impala, que também atuaram ontem no palco principal) até à também down under Courtney Barnett passando por Foals, Father John Misty, Two Door Cinema Club, Hot Chip e Radiohead, a escolha era plural e bastante diversificada, o que facilmente se percebe pelos nomes aqui expostos. Desde as 17 horas até às tantas da manhã, o NOS Alive viveu momentos de intensa festa. As mais de 55 mil pessoas presentes no recinto (e cada vez mais se percebe que os estrangeiros já adotaram como seu este nosso Festival), não ficaram defraudadas certamente, uma vez que, por comparação com o dia anterior, este foi bem mais fértil e proveitoso.
O segundo dia do Alive prometia e bem cedo as hostilidades começaram a ser abertas por parte dos australianos Jagwar Ma. Pouco passava das seis da tarde quando os três rapazes de Sidney começaram a debitar os seus sons no Palco Heineken. A plateia já estava bastante composta para aquela hora, uma altura que normalmente as pessoas ainda estão a entrar e à procura do que irão escolher para ver, o que costuma resultar em concertos a meio gás, um pouco por todos os palcos. Ontem não era o dia. Os Jagwar Ma conseguiram agarrar o público com as suas bombas da velha escola rave inglesa. Músicas como “What Love”, “Uncertainty”, “The Throw” ou “Come Save Me”, retiradas do seu disco de estreia, Howlin, mostraram que há algo mais nos Jagwar Ma do que apenas uma banda de tributo à Madchester, eles que estão perto de lançar um disco novo, tendo já apresentado algum do seu trabalho ontem na tarde lisboeta.
Com a fasquia bem alta após o concerto dos australianos, cabia à conterrânea Courtney Barnett não deixar cair o bom vibe que se tinha instalado. A nova sensação do novo punk não permitiria que os créditos ficassem em mãos alheias e resolveu pegar o touro pelos cornos e deu ao público do NOS Alive um dos grandes concertos do dia. A apresentar o seu disco de estreia, Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit, sexto melhor disco de 2015 para o Altamont, a australiana deu um concerto cheio de garra, atitude, simplicidade e eficácia. Liderando um power trio, a lembrar a escola indie do fim dos anos 80 e início dos 90, também Courtney faz lembrar outras personagens de antigamente. A atitude meio blasé e a guitarra canhota dão ares de Kurt Cobain, e a sua figura e voz não podem deixar de fazer pensar em Patti Smith, tendo o seu som muito de punk nova-iorquino, também próximo de Lou Reed e dos seus Velvet. Há uma série de (boas) influências, mas Courtney é maior e melhor do que a soma das suas partes. A prova disso é a grande legião que estava para a ver, ainda o relógio não batia as 20 horas.
Era chegada a hora de saltar para o palco NOS para vermos mais um regresso dos Foals a Portugal.
Uma experiência transcendente, porventura não terrena, do que pode ser um tremendo concerto de rock! O terceiro disco dos Foals teve como título Holy Fire e as canções que dele (e dos outros álbuns também) foram apresentadas corroboram o que afirmamos na totalidade: o fogo nas mãos destes seis homens fez mexer, saltar, berrar muitos dos presentes, como se morressemos todos ao último acorde de cada tema tocado. A agressividade desse disco, titânica e ruidosamente explorada no posterior e mais recente registo What Went Down, álbum que vinham, sobretudo, mostrar, confirma os Foals como uma máquina bem oleada, suficientemente experimentada para brincar com os seus grooves, embora sem se desviarem da catarse instantânea dos enormes refrães pop que tão bem sabem fazer. Bons exemplos do que afirmamos são a coda shoegaze avassaladora de “A Knife In The Ocean” ou a incineração elétrica dos acordes grunge de “Inhaler”, sobretudo na terceira volta dada ao violento refrão, completamente inesperada. O concerto abriu com “Snake Oil”, passou por “Olympic Airways” e “Red Socks Pugie”, avançando até ao crescendo meditativo e épico que é “Spanish Sahara”. Mas houve mais. Os grandes momentos pop que são “My Number” e “Mountain At My Gates” também se fizeram ouvir, ficando a certeza de que os Foals são já donos e senhores de uma obra cada vez mais cativante.
Tendo passado bons momentos ao som dos Foals, estava na hora de começar a brincar com os crescidos. Os senhores que se seguiam eram os Tame Impala, que já dispensam apresentações. A banda australiana (mais uma) está madura, adulta e consciente do seu lugar na actualidade e história da música. Kevin Parker sabe que a sua banda já não é a mesma que, em 2011 e em pleno cenário idílico do Meco, deu um concerto místico e envolvente, com as canções muito próprias do seu disco de estreia, Innerspeaker. É verdade que apenas cinco anos se passaram desde esse dia, porém parecem-nos décadas. A banda mudou e cresceu e ganhou uma reputação global que parecia ser quase impossível com Innerspeaker. Desse disco até ao momento actual muita coisa se passou. O seu segundo álbum, Lonerism, fez crescer um movimento e respetiva aceitação pelo rock psicadélico, algo que nem os grandes revivalistas do género, Kula Shaker, conseguiram fazer há duas décadas atrás. Claro que o single “Feels Like We Only Go Backwards” ajudou muito a essa aceitação, especialmente por parte do público feminino, esse mesmo que acabaria por dar um belo colorido à noite de ontem. Uma noite marcada pelo toque pop do seu mais recente trabalho, Currents. Esse mesmo, que anda a deixar a cabeça das meninas à roda através de músicas como “Let It Happen” (marcada pela explosão de confettis em pleno lusco-fusco da noite lisboeta), “The Moment”, “Yes I’m Changing” ou “The Less I Know The Better”. Ainda houve tempo para uma visita à colaboração que Parker fez com Mark Ronson em “Daffodils”. Foi um concerto mítico. Uma espécie de revivalismo do que acontecia em Portugal nos anos 90. Muitas bandeiras e cachecóis de apoio à Selecção Nacional (o que não é alheio o momento da equipa de todos os nós neste Europeu de boa memória), muitas meninas ao colo dos seus rapazes e muita festa e êxtase, que era a norma nos concertos de estádio em Portugal nessa era, pois como estávamos bastante fora do radar das grandes bandas, cada vinda de um grande nome era um evento nacional. A este ambiente festivo da noite de ontem juntou-se um outro ingrediente, impensável para a geração dos anos 90 – meninas a levantar as suas camisas e a mostrar tudo ao público que vibrava a cada vez que o operador de câmara apontava a mais uma beldade (ou será melhor dizer duas) do festival. Foi um fartote, um espectáculo dentro do espectáculo, a que o próprio Kevin Parker não ficou indiferente, brincando com a situação e fazendo juras de amor a esta cidade que tanto aprecia, prometendo voltar sempre que puder. Um belo concerto de uma grande banda.
Father John Misty é um ator. Dos bons, com escola de alguns anos, um homem experimentado na difícil arte do palco. Um poseur daquilo que interpreta, digamos assim. Essa postura torna-se imediatamente óbvia aos primeiros segundos de atuação, e é engraçado dar conta de que, se ouvirmos o recente I Love You, Honeybear, as coisas não poderiam ser de outra maneira. Está-lhe no sangue, é coisa orgânica, e isso mostra, por contratante que possa parecer, uma verdade artística bastante relevante. J. Tillman, agora investido na pele artística de Father John Misty, deu um enorme concerto, dos melhores da noite, encantadoramente tranquilo por instantes, mas com alguns picos de alta voltagem. As canções foram surgindo, magníficas, sempre duplamente bem interpretadas (na voz e na postura, claro está), seguras e imperiais: “Someone’s gotta help me dig” (não esqueçamos que Tillman queria, ainda muito novo, ser pastor evangélico, sobretudo por causa do aspeto performático que essa função tantas vezes requer) foi o primeiro grande momento do show, e aí Tillman parecia Cristo ressuscitado, impondo sem pressas a religião sonora que tão bem professa. Depois seguiram-se, entre outras, as soberbas “When You’re Smiling And Astride Me”, “Bored In The USA” (belo título para uma canção, a piscar o olho ao sucesso que todos conhecemos dos anos 80, embora nada se pareça com o tema em causa) e “Honey Bear”, entre tantas mais. Lá para o final do concerto, Father John Misty misturou-se com o público das primeiras filas numa comunhão épica e evocativa do momento sentido que se vivia. Acabou, curiosamente, e por entre longos abraços e beijos, com um soutien na mão. Fica-nos a certeza de que Father John Misty merecia um outro espaço para atuar (ele próprio disse “I’m very bad at festival banter”). Um Coliseu, por exemplo, e bem repleto de gente.
E começava a ficar apertado de tempo para ver a grande banda do dia. Já todos os elogios foram gastos com os Radiohead, e não seremos nós a ter a preocupação acrescida de qualificar, acrescentando algo de novo, àquilo que a banda representa, até porque «Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas», como bem soube dizer Almada Negreiros. Por isso é fácil e difícil (ao mesmo tempo) escrever algumas linhas sobre o concerto que os Radiohead deram ontem, numa noite que começava a ficar algo fria e ventosa. Repetentes, como bem sabemos, do Palco NOS (estiveram no mesmo local de ontem em 2012), os britânicos liderados por Thom Yorke começaram devagar, foram aquecendo (o som também não ajudou, note-se, sobretudo nos primeiros minutos de atuação), mas sempre com a entrega a que nos acostumaram. A banda já passou por várias fases, teve um marco discográfico incontornável em Ok Computer (um dos melhores discos de sempre, para muito boa gente), moveram-se desse terreno, entranhando-se com afinco por eletrónicas várias (e nessa circunstância Kid A também merece óbvio destaque), e agora parecem dispostos a nova mas subtil transformação. O recente A Moon Shaped Pool continua a brincar com os sintetizadores, é bem certo, mas abraça linhas e timbres melódicos como há muito não os víamos fazer, e nesse particular os Radiohead continuam fortíssimos! O concerto viveu disso, viveu igualmente da invulgar capacidade transgeracional que a banda sempre mostrou ter, e assim não é de estranhar haver tanta gente em comunhão, mesmo com idades tão diferentes entre si. Houve ecos de toda a discografia da banda na setlist do concerto de ontem, exceção feita ao álbum Amnesiac, injustamente esquecido, na nossa opinião. “Creep”, a penúltima canção da noite, já no segundo encore, “My Iron Lung”, “Paranoid Android” e “Karma Police”, que encerrou o espetáculo, “Everything In It’s Right Place”, “2+2=5”, “Reckoner”, “Lotus Flower” e as novíssimas “Burn The Witch” e “Daydreaming”, que iniciaram a atuação, são exemplos de que os Radiohead lidam bem com o seu passado, mas não esquecem que é no presente que se vive. Faltou “No Surprises”, e essa terá sido a maior surprise da noite que já ia longa.
Depois do concerto terminado, e depois de uma multidão totalmente saciada por culpa dos 24 temas tocados, o NOS Alive ainda oferecia mais bandas e mais música. Mas convenhamos, depois do que tínhamos acabado de ouvir, que outras razões nos moveriam a querer escutar mais qualquer outra coisa nas horas mais próximas? Que nos matem os fãs dos Two Door Cinema Club e Hot Chip, que nós ressuscitaremos amanhã para mais um dia de NOS Alive!
Texto: Carlos Vila Maior Lopes e Frederico Batista com Guilherme Portugal || Fotos: Francisco Fidalgo e Francisco Pereira