Acostumei-me ao encanto particular das canções, e das letras das canções de Nick Cave, desde os seus primeiros registos discográficos. Em nome próprio sempre, e menos enquanto membro dos The Birthday Party, banda que nunca me esforcei por adorar. A rudeza sónica de alguns temas e a beleza etérea de outros compostos por Nick Cave e seus pares faz parte do meu adn há já muitos e muitos anos. Mas não me interessei pelo músico apenas pelas suas canções. Também acolhi a leitura de livros como And The Ass Saw The Angel, King Ink (I e II) e The Death of Bunny Munro com agrado e reverência. As razões são múltiplas, e de vária ordem, das quais ressalto uma, mais do que todas as outras: é possível amar (sim, amar, esse verbo terrível de tão paradoxalmente verdadeiro e mentiroso) a decadência humana, a tragédia da existência, a dor de viver na mais absoluta entrega a uma vida que nos recebe de braços abertos, e tantas vezes nos deixa cair no mais profundo e impiedoso desamparo. Compreender a estranha beleza do que Cave representa é uma aprendizagem que pode ser feita sem custos desmesurados, mesmo que nos caminhos a percorrer tenhamos de enfrentar demónios seus e nossos, crimes sangrentos, fúrias e redenções com o dedo em riste apontado a Deus. Porque no fim, feita a a longa caminhada pelos insondáveis caminhos por onde Nick Cave nos leva, haverá sempre conforto e recompensa.
Feita esta introdução, importa agora referir-me a Nick Cave & The Bad Seeds – Live From KCRW, disco de finais de novembro do passado ano. Depois do aborrecido Push The Sky Away (não se enervem, nem me insultem, que é apenas a minha particular opinião), o disco aqui em causa surgiu para recolocar o good ol’ Nick no patamar que merece, e do qual tinha descido, e digo-o com alguma benevolência, dois ou três degraus. Mesmo sabendo que nele se perfilam quatro temas de Push The Sky Away, o registo feito ao vivo para a rádio do Santa Monica College, na Califórnia, tem o brilho, a força redentora e a limpidez dos registos menos grandiosos, e por isso mais íntimos e acolhedores. Parece missa, percebem?, no que a expressão tem de mais delicado e de sentido de perfeita comunhão. Mesmo que no fim os diabos se soltem, a pele se erice e o sangue jorre em “Jack The Ripper”. No entanto, e até esse momento derradeiro, há regressos ao passado que parecem vindos do céu. “Far From Me” e “People Ain’t No Good”, do mais do que sublime The Boatman’s Call, estão presentes e mostram-se canções belas como sempre foram, o mesmo acontecendo com “And No More Shall We Part” e “The Mercy Seat”, esta última do já longínquo Tender Prey. Dos tempos mais remotos há ainda “Stranger Than Kindness”, de Your Funeral… My Trial. Que bonita está! Não parece ter uma ruga… As canções do recente Push The Sky Away presentes neste Live From KCRW ganham outra vida, outro encanto. Aparecem despidas de acessórios, esqueléticas, quase nuas, e confesso que essa nova transparência me fez olhar para elas de maneira mais responsável. São já outras canções em mim… “Mermaids” é disso um bom exemplo, talvez o melhor, até. Mas também a canção tema do disco de estúdio de 2013 surge revigorada. Quanto ao resto, o que haverá mais para dizer? Que os Bad Seeds são irrepreensíveis nas atmosferas sonoras que constroem? Que a presença ao vivo de Cave é, como sempre, única e de um rigor absoluto? Que os violinos choram as dores do intrigante universo de Cave em rodopio, por vezes em ascenção, outras vezes em vertiginoso mergulho até ao mais profundo inferno? Que o seu piano tem a afinação dos deuses, e a sua voz a ternura áspera e doce de um anjo maldito que caiu, abençoadamente, do céu? Não vale a pena dizer mais nada…
Ouvir Nick Cave & The Bad Seeds – Live From KCRW será o bastante. Façam o favor.
ps: uma última nota para dizer, em plena euforia revivalista desse velho formato de 33 rotações, que as canções “Into My Arms” e “God Is In The House” estão presentes apenas na edição especial do disco em vinil, e portanto, excluídas da edição em cd que serviu de base a este texto.