Neil Young sempre serviu, desde meados dos anos 60, como um barómetro dos tempos. Muito mais do que apenas um músico, nunca se coibiu de usar a sua arte como forma de retratar a sociedade, intervir sobre ela, dizer o que pensa, muitas vezes lançando temas ou álbuns inteiros poucas semanas depois de um evento que fez o seu país adoptivo, os EUA, questionar o seu rumo.
Daí que seja absolutamente adequado que seja a sua voz a ser escutada quando a nação mais poderosa do mundo encara uma das potencialmente mais decisivas encruzilhadas da sua história recente. A poucos dias de termos o perigosíssimo Trump na Casa Branca, é impossível não ouvirmos Peace Trail à luz desse facto.
Ainda assim, o disco não foi gravado depois da eleição, o que torna ainda mais extraordinário o exercício, porque o álbum aborda muitos temas que foram focados na campanha eleitoral. Mais, aborda uma paisagem lírica que, à partida, colocaria Neil entre os brancos desiludidos com a globalização que levaram à vitória do milionário republicano.
O mundo está a mudar, a América também. Young, com os seus 71 anos, continua atento como sempre. E, sempre de antenas no ar, quando encontra o tom e a mensagem certa, corre para a garagem e grava um disco. Foi assim com Peace Trail. Inclusivamente, acabou por não o gravar com os Promise of the Real, que com ele fizeram o anterior The Monsanto Years. A razão explicou-a o próprio: os filhos de Willien Nelson andavam na estrada, em digressão, e Young não quis esperar por eles – “quando está ali, está ali, e tens de atacar”.
A faísca aqui foi a tentativa governamental de permitir a construção de um oleoduto em território índio sagrado, no Dakota. Young é desde há muito um ambientalista e um defensor dos direitos dos índios americanos, e a sua revolta foi o que bastou para que os dedos começassem a mexer sozinhos, à procura mais uma vez da guitarra que dê corpo aos seus pensamentos. Socorreu-se de músicos de sessão que conhece há muito e desabafou, novamente. Os Crazy Horse não estão oficialmente mortos, Young faz questão de o dizer, mas cada dia que passa é menos provável que voltem a gravar juntos.
O disco arranca exactamente com “Peace Trail”, um tema lento, ameaçador mas ainda assim muito bonito, em que fica marcado lema do álbum: “something new is growing”. Segue-se “Can’t stop working”, uma tema obviamente pessoal e confessional. Young explica que gosta de trabalhar e que isso pode ser mau para o corpo mas é bom para a alma, ao som de guitarra acústica e uma harmónica suja. “Indian Givers” volta ao Young activista e panfletário, pegando no ataque à terra sagrada dos índios do Dakota, cuja terra lhes foi tirada, depois dada, e agora de novo desrespeitada.
“Show me” traz de volta a harmónica e a guitarra acústica para uma música lenta, que podia ter sido uma das belas baladas de Young se ele a tivesse trabalhado para tal. Mas, aqui, o que interessa é produzir e gravar, andar em frente, e essa é uma das fraquezas deste disco. “Texas Rangers” é ainda mais desinspirada, apostando numa dissonância que acaba por não funcionar.
As coisas voltam ao trilho certo com “Terrorist Suicide Hang Gliders”, que arranca com a velha harmónica que é também som de marca registada do músico canadiano. O tema é o terrorismo, o medo, a confusão com que um cidadão normal lida com ameaças que não vê nem entende. É também uma das músicas que melhor faz a ponte para a América de Trump: “I think I know who to blame, it´s all those people with funny names/ moving into our neighborhood, how can I tell if they’re bad or good?”. Regressemos a “Indian Givers” e à frase, toda ela um manifesto: “bring back the days when good was good, lose these impostors in our neighborhood”, embora neste caso o medo seja do invasor do progresso em forma de máquinas e da exploração dos recursos naturais, envenenando a água e os solos.
“John Oaks” é mais um hino ambientalista, e uma nova prova da capacidade de Young pintar vinhetas que, em poucos minutos, criam uma personagem de carne e osso que não esquecemos facilmente. Aqui essa personagem é John Oaks, um homem simples e bom que se tenta impor contra a exploração dos políticos e a ocupação da terra, acabando por ser morto pela polícia.
Em “My Pledge”, tal como mais à frente em “My new robot”, é recuperado o velho som de voz digital que tanto chocou no falhado Trans, dos anos 80, uma distopia sonora que nos últimos anos tem sido alvo de uma reapreciação positiva. Em ambos os temas, é a voz de um velho cuja geração foi deixada para trás e que olha incrédulo para milhares de jovens a andarem nas ruas de olhos fixados no ecrã de um telemóvel. O que não deixa de ser curioso vindo de um homem que dedicou muitos anos da sua vida a desenvolvimentos tecnológicos, como um carro energeticamente eficiente ou o sistema de som Pono.
“Glass Accident” pega num tema doméstico, vidros quebrados no chão de casa, e cria uma metáfora sobre os problemas e quem os resolve (deixamos para os outros, limitando-nos a avisar? ignoramos? resolvemos nós?), numa música bonita ainda que não muito trabalhada. O já mencionado “My new robot” fecha Peace Trail com mais uma queixa sobre a tecnologia e a moderna dependência dela.
Peace Trail oscila sempre entre estes dois pólos, o Young que olha para a sociedade e o Young que olha para si próprio e questiona qual é, agora, o seu lugar. É, assim, um disco surpreendentemente pessoal, porque o indivíduo, neste caso o próprio, raramente está afastado das causas pelas quais luta. Um homem de 71 anos, cansado fisicamente mas paradoxalmente infatigável, que se recusa a parar, a calçar as pantufas, a deixar andar. Mas que não consegue deixar de ansiar pelos dias mais claros, mais simples, mais tranquilos do passado. Um álbum que serve como banda sonora dos dias de Trump, embora nunca se assumindo totalmente, deixando-nos sempre com a incómoda dúvida sobre se Young está a apoiar o discurso do medo do novo presidente ou apenas a ser o cronista de receios que o americano médio rural sente.
Não sendo um mau disco, longe disso, é daquelas obras para ser consumida e vivida no momento, a quente. Young luta contra o tempo, contra a inércia, contra o marasmo. Mas talvez seja tempo de parar para pensar, para descansar os seus incontroláveis dedos e burilar melhor a sua música. Não será fácil para quem sente o tempo a fugir e não sabe quanto mais discos conseguirá fazer. Mas a verdade é que o último enorme disco de Neil Young, Sleeps with Angels, é do já longínquo ano de 1994. Se nos últimos 20 anos não lançou um único mau disco, também é verdade que gostaríamos de o ver gravar com a ambição de fazer um grande álbum, do princípio ao fim, em vez de mais uma mensagem preocupada e zangada sobre os desenvolvimentos do último ano. Talvez seja essa a oportunidade para ir buscar os velhos Crazy Horse e, assim, voltar a entrar na clássica noite americana, uma última vez.