«A ridicularização é o tributo pago aos génios pelos medíocres», Oscar Wilde.
Os anos 80 trouxeram, para Morrissey, duas coisas importantes e acerca das quais ele sempre teve fortes opiniões: Margaret Thatcher e os The Smiths.
Se a primeira ajudou o jovem Steven Patrick Morrissey a definir, muito cedo, de que lado estava politicamente (do lado oposto, sempre, à Dama de Ferro), os segundos ajudaram a definir o que ele seria até hoje, artisticamente.
Foi em 1982 que o vocalista e Johnny Marr se encontraram com o objectivo de fazer música. Billy Duffy, guitarrista da primeira banda de Morrissey, os Nosebleeds, havia desfeito o conjunto, mas deixara ao vocalista o contacto de Marr, «muito melhor guitarrista que eu». Mas Morrissey, mais uma vez, estava entregue a um novo período de descrença e de depressão, e não seguiu esse conselho. Tudo podia ter terminado aí, ainda antes de começar. Acontece que Duffy havia também falado a Marr de um rapaz estranho e talentoso que poderia vir a dar um bom vocalista. Perante a inércia de Morrissey, Johnny Marr bateu à porta da casa dos pais daquele que viria a ser o seu parceiro artístico nos anos seguintes.
Tudo funcionou imediatamente. Depois de alguns meses de trabalho a dois, Marr trouxe o resto da banda: Mike Joyce na bateria e Andy Rourke no baixo. «O som conseguido naquelas noites de ensaio deixaram-me sem qualquer dúvida de que os Smiths funcionavam a muitos níveis, e que a batalha comece. Rapidamente o nosso set foi montado, cada ensaio de cada canção um doloroso tormento de excitação; nada alguma vez falhou, nada alguma vez sequer tropeçou», recorda Morrissey na sua autobiografia.
Com a banda montada, surge a primeira polémica, logo no primeiro concerto. Morrissey e Marr não tinham grande opinião acerca de Tony Wilson, o presidente da Factory Records, accionista principal da Hacienda e figura cimeira em Manchester, pela sua ligação à televisão e a muitas bandas locais. Em 1975 Morrissey havia dado a Wilson uma cópia do primeiro disco dos seus amados New York Dolls; «Nunca ouvi falar deles», foi a resposta do apresentador, deixando o jovem revoltado. Já nos anos 80, Wilson vê os Smiths ao vivo e aproxima-se do vocalista com uma opinião: «Não tenho a certeza acerca desse Johnny. Toda esta coisa tipo Byrds já foi feita». Morrissey, ainda inseguro, não responde. «O comentário testa-me no meu novo papel de camarada do Johnny e eu falho, porque permito ao comedor de carne Wilson dizer o que pensa», lamenta agora o cantor.
A carreira de Morrissey, nos Smiths e depois a solo, fica necessariamente marcada por polémicas e guerras infindáveis com as editoras. E isso, de facto, começou a suceder logo no princípio. Com a banda a ganhar gás e fama nos concertos, é a EMI a primeira a chegar-se à frente: dá à banda orçamento para gravar uma maqueta de três temas, para depois avaliar. «Miserable Lie», «What Difference Does It Make» e «Handsome Devil» são os escolhidos. A EMI não fica impressionada e recusa assinar com a banda.
Marr, além de ser o compositor de toda a parte instrumental e de ter escolhido metade da banda, dá mais um passo para se afirmar como o líder da banda; se não publicamente, pelo menos como o tipo que faz as coisas andar. Isto era a sua vida, e nada o faria parar. Por influência deste, decidem gravar mais um tema e ir apresentá-lo à Rough Trade, de Londres.
Esta editora, liderada pelo carismático Geoff Travis, era conhecida pelas suas apostas não-comerciais e pela sua atitude de feroz defesa dos artistas e da liberdade criativa. Isso atrai a dupla da frente dos Smiths. Lembra Morrissey: «Além de o catálogo da altura da Rough Trade ser antitudo, era também antiaudível, e seria preciso a chegada dos Smiths para trazer à editora o nível de sucesso e glamour que a Rough Trade nunca ousara esperar.» No entanto nem esta tarefa é isenta de problemas. Quando Marr e Morrissey viajam para Londres e chegam à Rough Trade para a reunião combinada com Geoff Travis, este recusa-se a recebê-los. O guitarrista não se fica. Corre atrás de Travis, atira-o contra a cadeira do seu gabinete e obriga-o a ouvir a maqueta de «Hand in Glove». O homem que, quatro minutos antes, nem lhes queria dizer «olá» fica rendido: «Bem, acho que é excelente e quero editá-lo imediatamente», responde o patrão da editora. Foi o início de uma relação de vários anos, sempre tumultuosa, entre a banda e a Rough Trade. Esta, como lembra Morrissey, deixou de ser uma coisa obscura e ferozmente independente ao nível de odiar o sucesso, para passar a ser «a editora dos Smiths» e, como tal, a atrair as bandas novas que antes nem olhavam para a empresa. O contrato entre as duas partes é assinado nos dias seguintes: de um lado, a Rough Trade, do outro Morrissey e Johnny Marr (excluindo os outros dois membros da banda). Estes estão presentes, mas apenas Mike Joyce assina o documento, e na qualidade de testemunha. Pode parecer um pormenor, mas definia claramente quem era a banda, e essa questão viria a ser desenterrada uns anos mais à frente, na que foi a maior guerra da vida do vocalista.
A banda recebe 6 mil libras em duas tranches. Da sua parte, Morrissey paga uma conta telefónica de 80 libras, com o resto a ser colocado numa conta, nomeada Smithdom, que serve para pagar a gasolina das duras digressões da banda em Inglaterra. «Hand in Glove» pega bem na rádio, e a edição inicial de 6 mil cópias em single esgota rapidamente. Segue-se uma viagem aos EUA, na qual Marr e Morrissey assinam acordo com a Sire Records para o mercado norte-americano, devido a exigência da Rough Trade. Os dois miúdos, porque a sua maturidade na música não se reflectia no resto, tudo assinam, sem saber o quê e sem fazer contas. «Burros que nem duas tábuas, Johnny e eu assinamos – mais uma vez com Andy e Mike como testemunhas. Não fazemos ideia do que estamos a assinar, num acto de lendária deficiência mental», recorda Morrissey. Passarão os anos seguintes a viver sem folga financeira, sem grande rasto do dinheiro que vão fazendo, embarcando em digressões com refeições baratas e de má qualidade.
No final do Verão de 1983, os Smiths estão a gravar o seu primeiro disco, homónimo. A editora contrata Troy Tate, guitarrista dos Teardrop Explodes, como produtor. Os primeiros temas gravados acabam por não satisfazer ninguém, fruto de uma banda inexperiente em estúdio e um produtor com pouca confiança e com pouca rodagem naquelas andanças. Essa versão, ouvida pelo presidente da Rough Trade, é de imediato rejeitada. Este agarra nos masters e entrega-os a John Porter, um produtor de sua confiança, para que remisturasse o material. O veredicto deste é terrível: as gravações estavam fora de tom e fora de tempo. Mais valia gravar tudo de novo, o que veio a acontecer, e é essa a versão que hoje conhecemos. Como acontece sempre nestas coisas, essa primeira versão não-editada (as sessões de Troy Tate) ganhou uma fama quase mitológica, com Marr e Morrissey, em diferentes alturas, a defenderem que era melhor do que a que acabou por sair. Aliás o vocalista, por várias vezes, afirmou que o produtor John Porter retirou peso à música dos Smiths nesse disco, deixando-a sem espessura e sem a gravidade e a urgência que os temas tinham ao vivo. Tanto assim foi que Porter não voltou a produzir os Smiths. Mais: insatisfeita com esse primeiro disco – cuja reputação foi sendo paulatinamente recuperada – a banda insistiu na edição apressada de um novo disco que juntaria novos singles, lados B e temas tocados ao vivo no ano anterior para programas da BBC, como o do histórico John Peel. Este disco é Hatful of Hollow, e nele podemos ouvir algumas (poucas) músicas que já estavam no disco de estreia, mas em versão live. E, de facto, nota-se uma vitalidade renovada (por exemplo, o baixo de Rourke mostra uma inventividade que não se adivinhava nas versões de estúdio conduzidas por Porter).
É nesta conjuntura que o disco chegou às lojas. O veredicto da crítica até é maioritariamente positivo, ainda que não eufórico. Morrissey, que acreditava ser esta a grande oportunidade para mostrar ao mundo o poder e a qualidade da sua banda, teve de concordar, decretando que a produção acabou por não permitir que as músicas se mostrassem em todo o seu potencial. O disco homónimo vende bem e, durante a semana de estreia, é apontado como o «número 1» nas vendas; quando saem os dados oficiais – num país cuja indústria musical tem como bandeira de vitalidade a corrida dos números – o disco The Smiths aterra em segundo lugar. À frente ficou uma banda new wave que, felizmente, a História esqueceu, chamada Thompson Twins. A admissão vem da própria editora: o disco teria sido número um se eles tivessem conseguido produzir as cassetes a tempo.
«A minha vida afunda. É um sino barulhento na minha mente afectada, e um que soa e soa pelos cinco anos seguintes, e diz-me que a Rough Trade não é capaz de produzir testosterona suficiente no que toca ao grande negócio, e que irá sempre atrasar os Smiths», diz o vocalista. A guerra surda e às vezes mais do que isso, entre a banda e a Rough Trade, durará até ao final da carreira dos Smiths, e até depois disso.
Ainda assim, há pontos positivos a retirar da experiência. «Numa voragem que conduz o mercado, de tripla platina de Queen e de megatudo de Phil Collins, os The Smiths estão mesmo ali, insubordinados, nos dias em que não há sinal, em lado algum, de artistas independentes ou de uma visão livre.»
Dos temas do primeiro álbum, mesmo entre os mais pop, muitos trazem segundas intenções. «Hand in Glove», por exemplo, que já havia sido editada em single quase um ano antes. Até hoje, é um dos temas mais queridos dos fãs da banda. Mais do que a música, foi a própria capa do single a chamar a atenção. A imagem de um homem, nu, de costas, era coisa que não se podia fazer em 1983. Havia os Wham, sim; os Duran Duran usavam maquilhagem com fartura; Boy George era uma estrela planetária; mas o imaginário gay só era aceitável se fosse camp, se desse piadas e excentricidade britânica; o corpo masculino nu, isso seria sempre escandaloso. Tal como Morrissey, que idealizou todas as capas dos Smiths, desejava.
«The Hand that Rocks the Cradle» é apontado por alguns críticos como uma desculpabilização da pedofilia, algo que a banda negou de imediato.
O disco encerra com «Suffer Little Children», que menciona um caso que marcou profundamente a sociedade britânica: os assassínios de Moors, quando um casal matou pelo menos cinco crianças na zona de Manchester entre 1963 e 1965. Numa sociedade que vivia o pós-guerra com a ilusão de um mundo sempre melhor, esse acontecimento chocou o país e sintetizou, para muita gente, 0 mal em estado puro e gratuito. Falar disto numa canção pop, enfim…
Temos assassinato de crianças; temos homossexualidade (a própria capa do disco traz Joe Dalessandro, actor fetiche de Warhol, em tronco nu); temos poesia; temos pedofilia; temos tristeza e desespero para dar e vender; temos um vocalista com uma voz de ouro mas uma mente e uma sensibilidade peculiares; e temos um génio, Johnny Marr, a acreditar finalmente nas suas capacidades. No entanto temos sobretudo uma banda sem medo de ser diferente.
Enquanto a indústria musical os vai ignorando, os Smiths vão ganhando fãs. «This Charming Man» dá uma boa luta nas tabelas de vendas, mas alterna posições muito altas com quedas vertiginosas, para depois voltar ao topo. A explicação é prosaica: os discos vendem-se muito bem quando estão disponíveis, mas a Rough Trade não consegue manter as lojas abastecidas, levando às quedas abruptas até ao carregamento seguinte.
Na primeira visita à América, a banda fica alojada no histórico Hotel Algonquin. Nem o facto de heróis de Morrissey como Oscar Wilde e James Dean terem lá pernoitado permitiram ao cantor ignorar as numerosas baratas que com ele decidiram partilhar quarto. Geoff Travis, que acompanha a banda aos EUA, mas fica alojado num hotel melhor, não parece preocupado com o telefonema aterrorizado que recebe fora de horas. Se essa primeira noite não foi «glamourosa», a seguinte foi desastrosa. O concerto de apresentação dos Smiths a Nova Iorque tem lugar no Danceteria. Morrissey entra em cena sem óculos e, vendo mal e meio cego pelas luzes, segue directamente para a boca do palco, caindo desastrada e pesadamente dele abaixo, com toda a indústria norte-americana a observar. Magoado seriamente numa perna, retira-se, mas Geoff Travis grita-lhe para voltar. Obedece, mas o concerto não é memorável.
Outros dois estavam previstos em solo americano, mas o baterista Mike Joyce adoece e as datas são canceladas. Joyce não pode sequer viajar, e a banda fica vários dias em Nova Iorque, sem compromissos. Durante todo esse período, Morrissey não vê ninguém da banda ou da editora, por mais que os procure. Começa a desenhar-se na sua cabeça a ideia de que existe uma conspiração para o correr dos Smiths. Há versões diferentes, mas Morrissey vive ainda hoje convencido de que o manager da banda, Joe Moss, convenceu os outros três membros a demiti-lo. No regresso a Inglaterra, silêncio entre os músicos. Semanas mais tarde, é Marr, mais uma vez, quem telefona a Morrissey e salva a situação. Joe Moss é demitido imediatamente. «Aparentemente, ter o Joe Moss como vocalista não era uma coisa que Johnny, Andy ou Mike achassem que fosse ajudar», sentencia o cantor, que nunca mais confiará inteiramente no seu gangue musical.
O disco seguinte viria incendiar a polémica ao introduzir na pop mainstream mais um tema político: neste caso o vegetarianismo e a intransigente defesa dos animais advogada até hoje por parte de Morrissey. Meat is Murder é, na minha opinião, o disco mais fraco da banda, embora para o vocalista simbolize um desabrochar musical e político da banda. O produtor escolhido é o engenheiro de som Stephen Street, na altura relativamente desconhecido, mas que veio, mais tarde, a produzir discos de Blur, Suede e Babyshambles, entre muitos outros artistas. A escolha do inexperiente Street permitiu à banda assumir todas as principais decisões musicais. Em termos de som, é um disco mais rijo, mais forte, mais ritmado, com mais espessura do que a estreia, ainda que eventualmente com menos temas memoráveis. No entanto o que fica é, sobretudo, o statement político, num ambiente musical feito de rímel, Spandau Ballet e coisas do género.
Meat is Murder dá à banda o seu primeiro e único «número 1» (todos os outros discos dos Smiths encalham no «número 2»). Aliás, é a primeira vez que um disco de originais de uma banda de Manchester consegue essa posição. Também nos EUA o culto vai crescendo, apesar do desinteresse das editoras que gerem o conjunto. Num show apoteótico em Los Angeles, Morrissey não consegue ficar calado: «Queria agradecer a todos aqueles que tornaram isto possível – os Smiths.» A própria imprensa musical norte-americana não sabe o que fazer destes rapazes ingleses magrinhos, cujo vocalista parece ser uma coisa efeminada que critica o consumo de carne. A Rolling Stone, lembra Morrissey, nunca escreveu uma linha sobre os Smiths, «apesar de considerar lógico dar atenção a qualquer subproduto a imitar os Smiths que lhes apareça à frente».
O ritmo de criação da banda é avassalador, sobretudo da parte de Johnny Marr, que está imparável e continua a debitar temas após temas. Stephen Street volta a ser chamado para produzir o seguinte álbum, The Queen is Dead, com Marr, na prática, a mandar nas sessões. Com o disco já gravado e pronto a sair, o inefável Geoff Travis volta a atacar, preocupado com o futuro, quando os Smiths terminarem o seu contrato com a Rough Trade e puderem assinar com qualquer uma que ofereça mais dinheiro e mais condições. Leva a banda a tribunal para que este decida se Hatful of Hollow, que saiu após The Smiths, e composto sobretudo por versões ao vivo e lados B, conta como um álbum e, como tal, se ainda pode ou não espremer mais um disco dos Smiths, lá para a frente. «Se não contava como um álbum era o quê? Um tributo feliz vindo da terra das fadas?», ironiza Morrissey. Marr, corajoso, considera que a situação é tão óbvia que vai a tribunal sem advogado, representando a banda, sendo absolutamente massacrado pelos advogados da editora. «O artista é o inimigo», lamenta o cantor.
O ambiente não é o melhor, mas a Rough Trade é a editora dos Smiths e há um trabalho para fazer. The Queen is Dead é apontado a «número 1», mas falha para o omnipresente Phil Collins. O truque é velho, embora a editora dos Smiths ainda não o tivesse aprendido. Quando os números de meio da semana chegam, os rivais – normalmente nomes grandes de editoras grandes – aumentam vorazmente a promoção, enquanto a Rough Trade já está a festejar um «número 1» que detém a meio da semana, mas não quando conta e entra para os livros de História.
Se a rádio vai ignorando os Smiths, a imprensa adopta-os, sobretudo a Morrissey. Não apenas a imprensa musical, mas também a dos mexericos, os tablóides. O cantor sugere que Marr fique com metade dos pedidos de entrevista, mas os jornalistas não querem necessariamente falar de música, mas sim de polémica; isso significa Morrissey. Morrissey a atacar a rainha, Morrissey a insultar Thatcher, Morrissey a pedir desculpa à rainha (coisa que o enfureceu porque nunca o havia feito). Entre o que efectivamente era dito e o que era inventado, Morrissey estava em todo o lado, e toda a gente tinha um lado acerca dele, ou o amavam ou o odiavam, a ele, à sua pose, às suas lições de moral, ao seu dedo apontado ao establishment britânico.
«Citações de Morrissey são disparadas pela imprensa em todas as direcções, distorcidas e exageradas, e apercebo-me de que a minha vida já não me pertence», lamenta. A situação explode com uma entrevista ao Melody Maker, que é escrita em tom de gozo e de tal forma distorcida que aparece na boca de Morrissey a admissão (falsa) de que passou a juventude a frequentar as casas de banho públicas dos subúrbios de Manchester. O cantor fica furioso e exige levar o jornal a tribunal, por difamação. A Rough Trade recusa, lembrando que o Melody Maker havia dado a capa a Morrissey, fraco consolo para este, que fica sem meios para combater e cada vez mais desiludido.
De seguida, um novo episódio na guerra surda entre Tony Wilson – o dono da Factory Records e da Hacienda – e os Smiths. Wilson organiza um festival com bandas de Manchester, a maioria das quais da sua própria editora, e convida aquela que é, de longe, a mais bem-sucedida banda da cidade. Inicialmente Morrissey recusa, com o argumento de que o preço dos bilhetes é demasiado elevado, mas na verdade porque considera que o evento não passa de mais uma afirmação de Wilson como o «Sr. Manchester» e do ego deste, de proporções gigantescas. O empresário insiste e Morrissey acaba por ceder. No concerto, os Smiths rebentam com tudo, afirmando o seu domínio com base na eufórica reacção do público, que contrasta com a tímida aceitação aos protegidos de Wilson, os New Order. Tal é a fúria de Tony Wilson — que se queixa do volume e da duração da exibição dos Smiths – que exige que seja desligada a corrente. Os seus próprios funcionários desobedecem. Wilson passará os anos seguintes a destilar veneno contra os Smiths, ainda que admitindo que o seu grande erro foi não os ter assinado pela Factory.
Nove meses depois do previsto, The Queen is Dead chega às lojas. Antes disso, Morrissey e Marr discordam em duas coisas, e cada um ganha uma das discussões. Marr está nervoso com o polémico título do disco, e sugere «Bigmouth Strikes Again», uma das faixas. O cantor não cede. Este sugere que «There Is a Light That Never Goes Out” não é tão boa como as restantes canções, e que por isso não deve ser incluída no disco. Marr ri-se desta sugestão e leva a sua avante. «Consigo aguentar esta humilhação porque a sugestão prova estar certa, porque o tema se torna – e continua a ser – muitíssimo amado como um dos componentes mais poderosos da carreira dos Smiths. Às vezes é um alívio estar errado», admite agora o vocalista.
Em Nova Iorque, Mick Jagger visita o camarim da banda. Marr está eufórico por conhecer um dos seus heróis, Morrissey nem por isso, considerando os Stones uma banda cujo estatuto é imensamente superior ao seu valor (mais tarde, veio mais uma vez a admitir que estava incrivelmente errado, «levou-me anos a perceber o génio secreto dos Rolling Stones»). Morrissey tem nesta fase consciência de que pode ser irritante e muitas vezes não consegue culpar quem o ataca. Explica: «Tinha de admitir que a minha intensa forma de agir era difícil de suportar por muita gente. Enquanto cantor dos Smiths, dedicava todos os meus esforços e convicção, e todo o meu ser era posto em cada canção. Isto pode causar algum embaraço em quem olha – o embaraço que nos faz baixar a cabeça quando vemos alguém a mostrar exageradamente a sua alma em público.» Isso e a sua absoluta frontalidade em defender os seus pontos de vista, que fazia o resto.
Na discografia, segue-se The World Won’t Listen, estranha colectânea de singles e lados B do período 1985–1987. Como em todos os seus discos, Morrissey é o responsável pela arte da capa, e explode com a Rough Trade quando esta, na versão em CD, corta a fotografia da capa original do LP. «Desisti de lutar. Até hoje, a capa do CD continua a ser ridícula face à majestade da capa do disco. Estas coisas contam», relata. É no meio da desilusão com a preguiçosa e autista Rough Trade que Marr e Morrissey recebem uma carta da EMI, que os quer contratar. «Ouçam, já chega. Vocês são ambos enormes artistas e estão a desperdiçar o vosso talento na Rough Trade, que não vos estima e não vos envia sequer um postal de Natal, apesar de terem sido vocês a colocá-los no mapa. Os Smiths devem estar com a EMI. The Beatles, The Smiths. Isto é Inglaterra. Os Smiths são os novos Beatles. Agora, parem de perder tempo», diz a missiva, reproduzida na autobiografia de Morrissey.
Contratualmente, os Smiths ainda deviam um disco à Rough Trade (lá está, porque Hatful of Hollow não contou), por isso Marr e Morrissey assinam com a EMI em segredo, colhendo, cada um, um adiantamento de 60 mil libras. Este segredo dura cerca de dois dias. Geoff Travis sabe do sucedido e, antes ainda de falar com a dupla, dá uma entrevista ao The Guardian acusando-os de terem assinado com a EMI por pura ganância. No meio desta turbulência contratual, surgem problemas dentro da banda. A imprensa tratava os Smiths como um projecto de Morrissey, e se Joyce e Rourke, de facto, não tinham grande voz artística, tal não era de todo verdade quanto a Johnny Marr, que começava a ficar cansado de não ser reconhecido. Uma das decisões que toma sobre isso é contratar outro guitarrista, Craig Gannon, limitando-se a informar Morrissey. O motivo oficial era libertar o compositor do seu papel de guitarrista rítmico, permitir-lhe dar outras texturas à música, mas Marr queria também poder, como o vocalista, atirar flores do palco nos concertos, ganhando parte desse protagonismo, o que era apenas justo. Ainda assim, para uma banda que era na prática um quarteto que nascera com uma dominadora dupla, este novo elemento veio perturbar as energias no seio do grupo.
A experiência revela-se um erro em variadíssimos níveis. Gannon não tem disciplina, nem aparentemente a vontade, de ser um Smith. Em palco, lembra Morrissey, Marr continua a tocar tudo, enquanto o novo guitarrista parece absorto. Numa digressão americana, destrói um quarto de hotel, desaparece durante dias e, genericamente, parece estar a fazer um frete. Quando regressam a Inglaterra, Morrissey e Marr combinam não voltar a contactar Gannon, e este, estranhamente, também nunca mais lhes diz nada. Tal como entrou da banda, sai, sem impacto.
Tal não o impede de processar a banda por «perda de receitas» e por reclamar a co-autoria, com Marr, de algumas músicas dos Smiths (sem que tenha especificado quais). Como foi sempre história na vida de Morrissey, o tribunal dá razão a Gannon, e este desaparece para sempre com uma mala cheia de dinheiro. «A lei é um asno», é a sentença do cantor.
A lenda conta que, à entrada para a gravação de Strangeways Here We Come, os Smiths eram uma banda à beira da desintegração. No entanto Morrissey conta uma história diferente. Recorda que as sessões decorreram sem atrito algum e num óptimo ambiente, que a música estava a sair facilmente e magnífica, que toda a gente estava em forma, sobretudo Marr, que pela última vez maravilhou o cantor com os seus múltiplos talentos enquanto instrumentista. É neste disco, curiosamente, que acontecem duas coisas: Morrissey creditado pela música, por martelar num piano em «Death of a Disco Dancer», e Marr creditado pela voz, que juntou a «Death at One’s Elbow». Este disco, talvez o meu preferido de toda a carreira da banda, fica como prova do momento de forma do conjunto.
E, depois, tudo rebentou.
Demos, mais uma vez, a palavra a Morrissey: «Após terminarmos as sessões de Strangeways, deu-se uma série interminável de reuniões com advogados e contabilistas, e, neste contexto, os Smiths deram o seu último e exausto suspiro e acabaram. Aconteceu tão rapidamente e tão pouco emocionalmente como esta frase o descreve.»
Muitas explicações já foram dadas, mas o mistério permanece, mesmo após entrevistas e livros e tudo. O argumento de Morrissey é simples: «Johnny e eu estávamos esgotados e vazios para além do que se possa imaginar, e não havia ninguém à nossa volta a dizer-nos para irmos descansar, isoladamente, para um lado qualquer.» Não fica claro se a banda terminou aí, se semanas mais tarde, quando os jornais entram em cena e começam a voar histórias de traição entre os membros dos Smiths.
Durante duas semanas, em que as coisas ficaram por decidir, Marr e Morrissey não se telefonam. Até que surge na imprensa a história de que os Smiths tinham terminado, atribuindo tal ao facto de as sessões para Strangeways terem sido férteis em guerras. Morrissey não sabe quem alimentou os jornais com estas mentiras e espera para ver se Marr as desmente. O mesmo sucederá com Marr. Tony Wilson, sempre pronto para ter nova vingança, sentencia que «os Smiths acabaram porque Marr se fartou finalmente de aturar Morrissey». Marr não desmente nada e, sem aviso, surge na televisão a tocar guitarra na banda de Brian Ferry, e junta-se depois aos Pretenders. Morrissey, atacado na imprensa e visto como a prima-dona que destruiu a banda mais amada do Reino Unido, reage nos jornais, e tudo o que diz é mostrado como uma acusação ressabiada a Marr. No meio de mal-entendidos, silêncios e acusações, a banda morre, para sempre.
Geoff Travis, que quer concertos para promover o novo disco, convence Morrissey a experimentar uma sessão com um novo guitarrista no lugar de Marr. Isto sugere que o fim da banda se terá devido à decisão deste, uma vez que essa sessão conta com o novo guitarrista e os restantes três membros dos Smiths. Mas a química não existe sem Marr, e essa sessão não tem sequência.
No meio do caos, Morrissey cai em depressão e paranóia, para o que não ajudam os medicamentos receitados pelo seu psicanalista. Quando vai ao seu consultório para se queixar dos efeitos que os comprimidos lhe estão a provocar (confusão, depressão), Morrissey é informado de que o seu médico se suicidou. É um tempo de morte, de fim.
Para ajudar à festa, a EMI volta à carga: mesmo não havendo Smiths, caberá a Morrissey cumprir o contrato assinado. Neste constava também a assinatura de Marr, mas a EMI queria a cara e a voz, e não alguém que aparentemente queria agora ser um guitarrista comum nas bandas de outros.
1987 é o ano do fim dos Smiths. É também o ano que em que a banda ganha o direito a figurar no Collins English Dictionary, sinónimo de ter entrado na cultura britânica. Em choque com o sucedido, Morrissey lê repetidamente o que a publicação diz sobre a banda. Emocionado, como um namorado adolescente rejeitado, corta a folha e envia-a a Johnny Marr, procurando lembrá-lo da importância do que haviam construído.
Marr não responde, e os dois homens não se vêem durante os anos seguintes.
Obrigado, Marco.
Excelente artigo. como fã hardcore dos Simths e do Morrissey parabenizo o autor.