O pop rock anglo-saxónico, que tanta boa música nos dá, tem um antipático lado negro: é uma floresta de eucalipto que sorve airplay em demasia, secando tudo em seu redor. Mas toda a acção gera uma reacção (e todo o poder um contra-poder), pelo que a simples sobrevivência de uma banda de músicas tradicionais europeias como os Monte Lunai (fundada em 2002 pelo multi-instrumentista Miguel Barriga) é um acto de resistência. Podem não ter metralhadoras nem bombas, mas têm algo talvez mais temível ainda: o poder irresistível de fazer dançar. Bastam algumas notas suas – uma gaita de foles aqui, uma guitarra ali, um violino acolá – e é o suficiente para velhas entrevadas e circunspectos secretários de estado começarem logo a bailar. Nunca subestimem este poder.
De facto, essa coisa de hoje em dia a malta ouvir música sem dançar é uma modernice com pouca relevância histórica: a humanidade viveu milhares de anos sem nunca separar a música e a dança, duas faces da mesmíssima moeda, e agora os Monte Lunai vêm finalmente repor o equilíbrio cósmico. Por isso cada uma das músicas (instrumentais) do seu álbum de estreia In Temporal corresponde a uma determinada dança tradicional, desde a muñeira galega de “Ponte Sampaio” até à mazurca polaca de “Zurca” (escrita pelo violinista da banda, o virtuoso Denys Stetsenko, de origem ucraniana), passando por muitas outras danças europeias, sobretudo oriundas da Europa de Leste e dos países mediterrânicos.
São danças antigas (algumas com centenas de anos), danças sociais em que toda a comunidade entra na roda. A monitora e bailarina Patrícia Vieira (membro permanente dos Monte Lunai) é responsável por ensinar os passos destas danças colectivas nos bailes. As danças reflectem sempre os ares do tempo em que foram concebidas pelo que o individualismo e sensualidade das danças modernas não podiam existir nos ambientes comunitários e recatados de outrora. É um jogo de faz de conta em que a malta urbana e cosmopolita que frequenta estes bailes revivalistas, desencantada com a modernidade naquilo que esta tem de cinzenta, artificial e individualista, tenta reconstruir o paraíso perdido da tradição, uma mítica idade de ouro imaginada como mais autêntica e colorida. Neste processo em que o muito antigo é filtrado pelo muito moderno, a tradição não permanece igual a si própria. Os Monte Lunai estão bem conscientes da importância deste passo: sabem bem que a tradição decalcada está destinada a morrer e que só permanece se for reinventada.
Os sinais dessa reinvenção são vários e começam logo pelos instrumentos: o contrabaixo, a bateria e o didgeridoo não são, definitivamente, os instrumentos típicos destas danças. Mas a renovação principal não reside aí mas sim na harmonização: se as melodias originais são genericamente aceites, são construídas por vezes harmonias (através das guitarras de Jorge Anacleto e de Tiago Oliveira) radicalmente novas que lhes dão um colorido bem diferente (veja-se o caso dos acordes complexos e pouco habituais da portuguesa “Passo Dobrado”). Por fim, há pequenos apontamentos de fusão com outros géneros, que denunciam a formação artística ecléctica dos seus músicos: em “Zurca” existe um momento em que o contrabaixo de Pedro Teixeira e a bateria de Tiago Oliveira começam a “swingar” à jazz e no Hassapiko Nostáligico (uma dança tradicional grega) existe um solo de saxofone também claramente jazzy.
A reinvenção tem que ser feita, contudo, dentro dos limites da estrutura da dança intrínseca a cada música. Existe por isso nos Monte Lunai uma tensão permanente entre a predisposição para a experimentação e a orientação para o baile: demasiada experimentação confundiria os passos de dança, ao mesmo tempo que uma centração excessiva no baile seria um entrave à inovação criativa. É neste delicado equilíbrio entre polos opostos que a banda lisboeta tece o seu som.
Numa altura em que o projecto europeu se desfaz aos poucos, e que os odiosos egoísmos nacionais se erguem de novo, é bom ouvir In Temporal, um álbum que celebra a riqueza e diversidade da velha Europa. Dada a singularidade dos Monte Lunai no panorama da World Music nacional, nomeadamente pela renovação do repertório das canções tradicionais europeias tocadas nos bailes costumeiros, é natural que o público os receba com entusiamo. Já tocaram em muito lado, desde o Festival Andanças até à Festa do Avante, chegando mesmo aos Açores, a Espanha e a Cabo Verde. Só lhes falta um reconhecimento final que, acontecendo, abriria com certeza as demais portas. Falo, é claro, do Festival de Músicas do Mundo de Sines, o maior festival português de World Music. Eu, que sou frequente assíduo do FMM, gostava muito de os ver por lá.