Poderá a música ser, acima de tudo, uma encenação quase teatral de uma realidade irónica, perversa e desconcertante, mas mesmo assim trazer em si mesma as marcas reconhecíveis daquilo que nos fascina no universo sonoro organizado, , estético e artístico? A resposta é afirmativa, pois claro, e tem um nome: King Missile III.
O poeta-agitador de vanguarda que dá pelo nome de John S Hall (atentemos na fonética da expressão, e tudo ganhará mais sentido) é o responsável principal (quase único, aliás) do projeto King Missile, que apenas a partir de 1998 passou a acrescentar à sua designação inicial o númerico III. São norte americanos, muito pouco conhecidos e, portanto, uma banda de culto, embora pouco expressivo, diga-se. Desde o seu início, em 1987, e até aos dias presentes, os King Missile / King Missile III lançaram já um número considerável de obras discográficas, mas a que vos trago hoje à consideração intitula-se failure (grafada assim mesmo, com minúscula inicial), e é, quanto a mim, o seu trabalho mais representativo, embora nela não se encontre qualquer dos seus hits, se assim se pode dizer. failure é um disco de 1998, e como sempre acontece com os King Missile, as composições que dele fazem parte dão mostra, através das suas lyrics, de uma universo muito particular. John S Hall vai proferindo versos (na realidade, neste e em todos os outros discos da banda, fala-se mais e declama-se mais do que se canta) sobre a sua ímpar visão do mundo. Não nos esqueçamos que John S Hall é um poeta, muito mais um trabalhador do texto do que do som, embora a concordância entre ambos atinja, por vezes, verdadeiros momentos de exceção. Reparemos, para início de conversa, nos títulos de algumas das composições de failure: “Up My Ass”, The Little Sandwich That Got a Guilt Complex Because He Was The Sole Survivor of a Horrible Bus Crash” ou ainda “Gay / Not Gay”, esta última uma verdadeira comédia soft porno em termos líricos, composta por uma prosa delirante que ajuíza sentencialmente o potencial gay ou não gay de diversas situações. Vejamos um ou outro exemplo, mas deve ter em conta que é conveniente ser maior de idade. Depois não diga que não avisei: “Discussing sex with a guy is gay. Discussing sex with a women is straight. Even telling a woman “Sometimes I wonder what it would be like to suck a cock,” is straight.” (…) “Sports are gay, especially contact sports, unless you’re the only guy on both teams, in which case it’s straight.” Ou ainda, para finalizar, mais este achado: “Here’s an interesting one: Kissing a gay guy on the cheek, or letting him kiss you on the cheek is neutral, as long as the guy is out of the closet. Hugging and/or kissing a straight guy is gay.” Estamos entendidos? Enfim…
Mas falemos um pouco mais de failure, título do disco, mas também da canção que o inicia: “Failure” (agora grafado com maiúscula) é um belíssimo tema melodicamente sussurado e de finíssima ironia, tratando dos tópicos do fracasso e do sucesso, e onde uma vez mais as palavras são poderosas e marcantes: “Failure wants to be your friend, the one you can count on when success, that is ever elusive, eludes you.” Que belo statement! O disco é, aliás, todo ele um happening, uma representação musical delirante de situações inusitadas, mas igualmente reveladoras da estranheza do mundo em que vivemos. Em termos musicais, as catorze canções do disco vão surgindo através de formas mais ou menos estruturadas, por vezes sem mácula, outras tantas com um caráter mais experimental. O ambiente sonoro, como já foi percebendo, vai mudando e as variações não deixam de nos surpreender. Por tudo isto, e certamente por muitas outras coisas que uma audição mais atenta poderá revelar, vale a pena descobrir uma banda que já nos deixou temas interessantíssimos como “Jesus Was Way Cool” (do álbum Mystical Shit, de 1990), “Sensitive Artist” (Fluting On The Hump, 1987) ou “Detachable Penis” (Happy Hour, 1992). No entanto, e se quiser aventurar-se por sua conta e risco nessa aventura de palavras e sons que dá pelo nome de King Missile, não pode esquecer-se do que aqui lhe fui dizendo: é uma banda centrada no texto, mais no texto do que no som, ou não fosse o seu fundador um poeta marginal, quase maldito, mas sempre capaz de surpreender quem lhe dê a devida atenção. Das suas várias encarnações [King Missile (Dog Fly Religion), King Missile e King Missile III] sugiro ainda dois títulos, para além dos quatro já mencionados: The Way To Salvation (1991) e King Missile, de 1994. Isto se tiver, como eu tenho, uma alma eternamente à procura de ideias musicais novas que mereçam ter mais reconhecimento do que aquele que, infelizmente, vão tendo. Talvez não se arrependa, mas se o arrependimento surgir, já sabe o que fazer: delete!